Logo após a queda do muro de Berlim o filósofo e economista americano Francis Fukuyama escreveu seu célebre artigo “O fim da história”, retomando um pensamento desenvolvido por Georg Frederick Hegel, filósofo alemão do século dezoito. A tese central de Fukuyama partiu do pressuposto de que com o fim do antagonismo que dividiu o mundo em dois blocos (capitalismo e socialismo) e levou aos quarenta anos de guerra fria, estabelecia-se uma ordem eterna pautada pelos valores liberais. Tanto na economia como nos sistemas políticos.
O fim da União Soviética, dois anos após, parecia vir para confirmar a previsão de Fukuyama. A democracia liberal se espraiou para países do bloco europeu, inclusive na Rússia por meio do governo de Boris Yeltsin. Concomitantemente, a China, com as quatro modernizações de Deng Xiaoping, marchava para se integrar ao mercado mundial, dando início a um crescimento econômico de dois dígitos ao ano, por um longo período. A percepção era de que o desenvolvimento capitalista chinês, com a constituição de uma forte classe média, levaria o país de Mao, inevitavelmente a desaguar em uma democracia.
Com o fim da polarização dos tempos da guerra-fria, o mundo tornou-se unipolar, com a hegemonia absoluta dos Estados Unidos. Sem concorrente, a OTAN avançou para o Leste Europeu, chegando até as fronteiras da Rússia. A Doutrina Busch do início do século levou seu país a agir como a “polícia do mundo”, intervindo em guerras como a do Iraque, da Síria e do Afeganistão, ao tempo em que estimulou a “Revolução Rosa” na Geórgia e a “Revolução Laranja” na Ucrânia.
Do ponto de vista econômico, a globalização, com o advento das grandes cadeias produtivas pautadas pela necessidade de inaugurados nos governos de Ronald Reagan nos EUA e de Margareth Thatcher, na Inglaterra.
Verdade que a “ordem eterna” começou a sofrer abalos já em 2008, com a crise mundial dos derivativos. A hegemonia americana no plano econômico começou a sofrer a concorrência da China, o que levaria à guerra comercial e tecnológica entre os dois países, no governo de Donald Trump. E como a globalização foi assimétrica, a contrapartida foi a reação dos “perdedores da globalização”, da qual o Brexit e a vitória de Trump foram os fatos mais significativos.
A era descortinada por Fukayama chega ao fim com guerra de Vladimir Putin na Ucrânia. O conflito instalou um momento disruptivo, com o restabelecimento da bipolaridade e sua consequente nova divisão do mundo em dois blocos geopolíticos. De um lado, a aliança norte-atlântica constituída pelos EUA e a Europa Ocidental e, de outro, o bloco eurasiano, constituído pelo eixo Pequim-Moscou, com tendências de se expandir para a Índia, Turquia e Irã.
O conflito bélico da Ucrânia, o primeiro envolvendo dois países europeus pós segunda guerra mundial, é a parte quente de uma nova guerra-fria. Mas há aqui uma diferença fundamental em relação à bipolaridade do século passado.
Esta se dava entre dois sistemas antagônicos – capitalismo versus comunismo – e o alinhamento geopolítico se dava por afinidades ideológicas e de princípios. A guerra-fria contemporânea se dá principalmente no terreno econômico. A corrida principal não é nuclear ou bélica, é econômica ou tecnológica.
O fato de a principal batalha ser em torno da hegemonia econômica e tecnológica suscita dúvidas sobre a natureza da aliança entre a Rússia e a China, reafirmada nos jogos olímpicos de inverno de Pequim. Ainda não está claro se ela é estratégica e inabalável, como a definiu Xi Jinping ou se é uma aliança tática, conforme considera Ronaldo Carmona, do Centro Brasileiro de Relações Internacionais. Isto explica nuances entre os dois países mesmo em relação à guerra da Ucrânia.
A China não condenou a invasão russa, mas defende a solução pacífica para o conflito. O pano de fundo é que a China é inteiramente integrada à economia mundial, responsável por um quinto do PIB do planeta, e beneficiou-se do processo de globalização.
O segundo grande fenômeno da nova ordem econômica mundial é a desglobalização, que antecede a guerra da Ucrânia. Vide o Brexit e a eleição de Donald Trump. A pandemia evidenciou que a dependência das cadeias produtivas globais de insumos médicos se torna crítica em momentos de grave crise sanitária, afetando a soberania dos países.
A guerra da Ucrânia expôs a olhos nus a dramaticidade da ultra dependência das cadeias globais. A alta do preço do petróleo e a dependência da Rússia colocou na ordem do dia a necessidade dos países da Europa Ocidental encontrar e investir em fontes energéticas alternativas. Mesmo no terreno militar, o conflito está levando a uma redefinição da “divisão de trabalho” vigente desde a guerra-fria passada.
Os países dessa parte do continente pouco investiam em termos bélico-militar porque o poderio dos Estados Unidos servia de “elemento de contenção”, conceito formulado em 1947 pelo diplomata americano George Kennan. Donald Trump, como presidente, reclamava do fato de seu país arcar com os custos da OTAN, exigindo que os países europeus investissem na área militar. Com a guerra da Ucrânia a Alemanha, a França e outros países pretendem aumentar seu orçamento militar, por uma questão de segurança nacional.
Como observou Larry Fink, CEO da BlackRock, maior gestora de ativos do mundo, “as punições econômicas à Rússia levarão ao desmoronamento da globalização” e vão acelerar o processo de desmontagem da cadeias produtivas globais. A China, por exemplo, já está investindo pesado para desenvolver seus próprios chips para não depender dos chips dos Estados Unidos.
A desglobalização consiste exatamente em os países diminuírem a interdependência e terem mais autonomia em áreas que são vulneráveis e/ou estratégicas. No caso brasileiro, essa demanda ficou evidenciada em relação aos fertilizantes, face nossa dependência da Rússia. O fator custo de produção foi determinante para a formação das cadeias globais. Agora, ele não será o único. Países tendem a aceitar custos de produção maior, desde que assegurem por meio da produção interna.
Na Nova Ordem Mundial em gestação faz todo sentido a afirmação do diplomata e ex-ministro da Fazenda, Rubens Ricúpero: “Pode-se chegar a um mundo em que haja dois sistemas de pagamento, dois sistemas bancários e mesmo dois sistemas de internet separados, o que atingiria a globalização no seu âmago”.
Com a economia se transformando em arma geopolítica não estamos muito distante do quadro descortinado por Ricúpero. O Irã já criou seu sistema de Internet. Mesmo o dólar como moeda única do sistema econômico mundial pode perder esse status. Países como a China, a Rússia, a Índia e até mesmo a Arábia Saudita – aliada histórica dos Estados Unidos – já utilizam outra moeda que não a americana nas relações comerciais interpaíses da eurásia.
A bipolaridade e a desglobalização trazem novos desafios para o Brasil. Se de um lado nos identificamos com os valores do mundo ocidental, a China é o nosso principal parceiro comercial. Essa é uma diferença enorme em relação ao período da guerra-fria do século vinte, quando nossas relações comerciais com a então União Soviética eram irrelevantes e o alinhamento geopolítico com os Estados Unidos não afetava os interesses econômicos do Brasil. Agora, a história é diferente.
Por isso mesmo o pragmatismo responsável – pilar fundamental da nossa cultura diplomática – aconselha a não se alinhar com nenhum dos dois blocos e a entender que é de nosso interesse um mundo multipolar em um ambiente de paz, bem como o fim das punições econômicas como arma geopolítica. A continuidade das punições à Rússia contribuirá mais ainda para o desmonte das cadeias globais e obrigará o mundo a conviver com mais inflação, comprometendo o crescimento da economia mundial e do nosso país. E se a moda pegar, e os Estados Unidos resolverem nos retaliar por mantermos relações comerciais com a Rússia, da qual dependemos em insumos estratégicos como os fertilizantes?
A postura institucional do Brasil deve ser, como destacou Ricúpero, condenar moralmente a invasão russa, mas, ao mesmo tempo trabalhar para se consiga logo um acordo de paz, e, depois disso, o desmonte dos mecanismos de sanções, com o restabelecimento do sistema internacional anterior à guerra. Até porque a utilização de represálias econômicas como arma geopolítica fere os valores que devem nortear as relações internacionais.
Muito interessante o artigo de Hubert sobre os abalos da globalização por conta da guerra na Ucrânia. Entretanto, a ideia de uma desglobalização, como um retrocesso significativo da integração das cadeias globais de valor me parece exagerada. O isolamento da Rússia e mesmo as relações da China e da Índia com este país não devem, a meu ver, levar à formação de outro bloco econômico e comercial desligado do sistema global. Dificilmente a China vai apostar em alguma forma, mesmo parcial, de “autarquização” dentro de um bloco, por maior que este seja se juntar Rússia e Índia. O “milagre” chinês das últimas décadas não teria sido possível se não com a integração da economia e comercial da China com os Estados Unidos e com a Europa. Como lembra Hubert, a China se beneficiou da globalização. Mais do que isso, na verdade, a China foi e ainda é a grande beneficiária da globalização, além de ter levado este processo a uma escala excepcional. Os “perdedores da globalização” estão nos Estados Unidos e na Europa e, quase sempre perderam para a economia chinesa. A China não vai querer nem pode se desligar destes mercados globais sob pena de perder a grande demanda para parte significativa da sua pauta de exportações. Nem a China nem a Índia, mesmo formando um eventual bloco com a Rússia, vão criar barreiras aos negócios globais.
É muito provável que haja retrocessos localizados e parciais na integração mundial pela quebra da confiança nas cadeias de suprimentos gerada pela pandemia e pela guerra da Ucrânia, denunciando a excessiva concentração de certas etapas nas cadeias produtivas em alguns poucos países (petróleo e gás da Rússia, o trigo da Rússia e da Ucrânia e dos fertilizantes e, com a pandemia, a produção de suprimentos concentrada na própria China e na Índia). Mas não nada que se possa considerar um processo mais amplo de desglobalização. Seria um desastre para a economia mundial e para todos os países. Não interessa a nenhuma grande potência econômica, menos ainda à China.
Me parece um grande exagero apocalíptico a afirmação de Larry Fink, citada por Hubert, de que “as punições econômicas à Rússia levarão ao desmoronamento da globalização”. Mesmo que haja uma tendência, de parte de todos os países, de se proteger de uma excessiva exposição externa de produtos ou insumos estratégicos, e até a formação de algum bloco econômico na eurásia, como fala Hubert, a globalização vai continuar dominando na economia e nas relações internacionais. A revolução nos transportes e, principalmente, nas telecomunicações reforçam esta convicção.