De novo, como em 23 de abril de 2017, teremos Marine Le Pen contra Emmanuel Macron. Et pourtant… Nada a ver com a canção de Charles Aznavour. E no entanto… a situação em 2022 não tem a mínima semelhança com a de cinco anos atrás, exceto esses dois nomes [1]. Neste primeiro turno, mais de metade dos eleitores franceses optaram por candidatos nos extremos, à extrema esquerda ou à extrema direita. O centro encolheu, o que não ajuda um Presidente de centro. O resultado final do 1º turno foi Macron 28,6% e Le Pen 24,4%, uma diferença de menos de cinco pontos percentuais. Pesquisas de opinião pouco antes da votação do 1º turno em 10 de abril davam uma ligeira preferência a Macron na disputa com Le Pen no 2º turno, 52% a 48%. Mas isso pode mudar até domingo 24 de abril, dependendo de como se distribuam os eleitores dos candidatos que não chegaram ao segundo turno.

Surpreendeu tanto a ascensão de Le Pen, que reduziu sua margem em relação a Macron, quanto a de Jean-Luc Mélenchon, do partido La France Insoumise (que obteve 20,2%), junto com o colapso dos partidos tradicionais na arena nacional, Republicano (4,6%) e Socialista (1.9%), de centro-direita e centro-esquerda. Além disso, apareceu nesta eleição um novo candidato à direita de Le Pen, Éric Zemmour, que obteve 6,8%.

Esse enfraquecimento dos partidos tradicionais em favor de uma cena política mais fragmentada é comum a outros países da Europa Ocidental, ainda que a presença de 11 candidatos presidenciais seja extrema. Mas, na França, diferente da Alemanha, não se firmou um debate ambientalista liderado pela centro-esquerda e prevaleceu a guerra cultural em torno de questões de imigração e identidade nacional.

Ultraxenofóbico virulento, um comentarista do canal CNews (equivalente francês da Fox News) virou político e se lançou candidato presidencial em novembro de 2021, Éric Zemmour. Zemmour é o único candidato a declarar que o Islam é incompatível com a república, já foi duas vezes processado e condenado por racismo contra muçulmanos e minorias, e até já defendeu deportação de certos cidadãos muçulmanos. O cerne do discurso de Zemmour é um lamento sobre o declínio nacional da França, ou “suicídio”, conforme o título de seu livro mais conhecido Le suicide français (2014), junto com uma fantasia conspiratória de que a maioria branca e cristã da França e da Europa está sendo substituída por hordas de migrantes não brancos, em particular muçulmanos, e do norte e do oeste da África. Aliás, paradoxalmente, segundo ele, o “dogma feminista” é parte do declínio.

Tal pesadelo demográfico, no caso de Zemmour, aparece junto com nostalgia de um passado glorioso da França, enfatizado em sua campanha presidencial. Deu ao seu partido o nome Reconquête (“Reconquista”, evocando a reconquista da Península Ibérica pelos cristãos contra os muçulmanos no século 15). Para ele, o principal perigo para a França são os estrangeiros, a União Europeia aí incluída.

Zemmour teve menos de 7% dos votos, mas sua grande contribuição à ascensão da direita francesa foi ajudar que Marine Le Pen parecesse moderada. Pois enquanto Marine Le Pen afastou-se do pai e de seu racismo sem disfarces, Zemmour em nada difere do velho Jean Marie Le Pen, com quem foi jantar, e é ainda mais provocador. Na verdade, a Le Pen apresentou-se na campanha em “embalagem” mais moderada, comportou-se gentilmente, com ares presidenciáveis, e não enfatizou suas posições mais polêmicas. Sobre algumas delas está prometendo referendos, o que na verdade é forma tumultuosa de contornar o Parlamento francês. 

Mas será que Marine Le Pen de fato moderou-se? Para além de mais sorrisos e de ter se mostrado interessada nos problemas das “pessoas comuns”, como o poder de compra e o aumento de preços? Prometeu reduzir o custo de vida, mas não alterou seu manifesto. Quer impor multas a quem usar o véu muçulmano em público e cancelar o direito de cidadania para quem nasce na França, o que aumentaria a tensão entre a polícia e as comunidades de muçulmanos, que já são particularmente traumáticas na França, que em anos recentes sofreu dos piores ataques de ISIS e outros terroristas islamistas, como aqueles contra os jornalistas do Charlie Hebdo e o supermercado kosher, além do assalto ao Bataclan, em 2015, e outros casos mais recentes.

Le Pen tampouco abdicou de seu projeto de desconstrução da União Europeia (UE): diz que não quer “Frexit”, diz que não se trata de contrapor uma visão pró-Europa a uma visão anti-Europa, e sim, de como a Europa é organizada. Só que promete o primado da lei francesa sobre o das leis da UE, o que seria incompatível com a união de 27 nações, e promete unilateralmente reduzir à metade as contribuições da França ao orçamento da UE. Tem cultivado laços com os autocráticos da Hungria, sendo das primeiras a cumprimentar Viktor Orban por sua vitória eleitoral deste mês, apesar de a União Europeia ter isolado a Hungria e acusar Orban de violar as leis, suprimir a liberdade de imprensa e tolerar corrupção. Além de financiamento de campanha da Rússia, Le Pen obteve financiamento de um banco da Hungria. Tanto húngaros quanto poloneses têm disputas judiciais com a UE por questionarem, como Le Pen, a prevalência das leis acordadas na União Europeia. Igualmente preocupantes são suas ideias sobre impostos, subsídios e comércio, de cunho protecionista e estatizante, contraditórias com as diretrizes econômicas de liberalização e harmonia de regras que conformam a União Europeia e as atividades da Comissão Europeia.

Recentemente Le Pen amenizou sua defesa de Putin (e de Trump), mas não mudou sua intenção de retirar a França da estrutura militar de comando da OTAN, que já chamou outrora de “organização provocadora de guerra”. Apesar disso, na sua conferência de imprensa do último 13 de abril em Paris, declarou que a França permaneceria fiel à OTAN e enviaria equipamento à Ucrânia.

Segundo Gideon Rachman, o principal colunista de assuntos internacionais do Financial Times “as reações em Bruxelas e Berlim a uma vitória de Le Pen seriam de horror – provavelmente seguidas de negociações”.  Sem dúvida um enfraquecimento da União Europeia: além do apoio a posturas como as da Hungria e da Polonia seria um reforço aos apoiadores do Brexit em parte já desiludidos. Está claro que todo esse aumento da atenção dos analistas de política internacional sobre as posições de Marine Le Pen, e suas nuances, se deve a que a direita francesa atingiu níveis de apoio sem precedentes na história da França pós 1945.

Emmanuel Macron ainda é o favorito, mas certezas não há. Segundo o The Economist, o modelo da revista deu a uma vitória de Macron a probabilidade de 74%. Há mais pessimismo noutros lugares. Até 10 de abril Macron não deu atenção à campanha eleitoral, ocupado com telefonemas a Vladimir Putin que não tiveram resultado e com a formulação e discussão das posições europeias sobre a guerra da Ucrânia. E assim deixou a impressão de “desinteressado”. Não captou o estado de ânimo da população, que teve este ano um índice de abstenção das urnas algo maior que há cinco anos, e na qual já circulava uma pecha de “presidente dos ricos” (e não só por sua crítica ao imposto sobre fortunas sem coordenação internacional). Em alguma medida sua imagem ainda sofre com os arranhões do caos imposto pelas manifestações violentas dos “coletes amarelos” em 2018/2019 [2]. 

Agora Macron está visitando preferencialmente vários locais em que ganhou a esquerda de Melenchon, nas regiões mais pobres, para mostrar que se importa, sim, com o padrão de vida dos franceses. Tem bons resultados a mostrar na administração da pandemia, no crescimento da economia e na redução do desemprego ao menor nível em uma década. Agora declarou estar disposto a ir mais devagar com sua reforma da Previdência, que deveria elevar a idade mínima da aposentadoria para 65 anos até 2030. A reforma é impopular mas faz sentido, pois a França tem o dobro de gastos com previdência que a média da OCDE e tem a menor idade de aposentadoria dentre países desenvolvidos, de 62 anos de idade para homens e mulheres.

Mélenchon, defensor de reduzir a idade de aposentadoria, de retirar a França da OTAN e eliminar a energia nuclear, tem, com seus 20%, mais influência que qualquer outro sobre o 2º turno. Logo que saíram os resultados do 1º turno, apelou a seus apoiadores “não deem um único voto a Le Pen”. Ao mesmo tempo não chegou a pedir que votassem Macron. Já Zemmour imediatamente declarou seu apoio a Le Pen reiterando: “Opondo-se a Le Pen está um homem que permitiu que 2 milhões de imigrantes entrassem na França”. Parece claro que a quase totalidade dos eleitores de Zemmour irá para Le Pen.

Mélenchon não tem em suas mãos a capacidade de decidir a vitória ou a derrota de Macron, não tem controle sobre seus liderados. Sabe-se que, em 2017, metade da base de Mélenchon votou Macron no 2º turno, mas agora Macron é governo, e há sempre a parcela dos desiludidos. Além de que não se percebe o clima geral de união republicana contra a extrema direita fascistizante que deu a Macron mais de dois terços do voto no 2º turno de 2017. Segundo uma pesquisa Ifop-Fiducial feita agora logo após o resultado do 1º turno, Macron receberia o voto de 1/3 dos votos de Mélenchon. Metade ainda não se havia decidido, e parte significativa dos eleitores de Mélenchon, mais preocupados com o custo de vida do que questões de identidade nacional ou democracia, esperavam votar em Le Pen. Valérie Pécresse, do Partido Republicano (4,6%), declarou seu apoio a Macron (assim como em geral o empresariado), mas tampouco controla seus apoiadores, que se dividem entre Macron e Le Pen.

Pode ser que no fim de todos os cálculos prevaleça a simpatia dos franceses pela União Europeia e a Zona do Euro, que superou a velha resistência à CAP, a Política Agrícola Comum. Na pátria de Jean Monnet e Robert Schuman, ou de Jacques Delors, arquitetos franceses do projeto de integração europeia, que é também a pátria de Simone Weil, a primeira mulher a ser Presidente do Parlamento Europeu, a população em geral tem apoiado a trabalhosa construção da unidade europeia, e políticos franceses têm sido importantes nessa construção “de uma França forte dentro de uma Europa forte”. O próprio Emmanuel Macron teve papel relevante no estabelecimento do fundo para a recuperação da Europa (a chamada Recovery and Resilience Facility) criado depois de 2020 para ajudar os estados membros da União Europeia a enfrentar os efeitos da pandemia do coronavirus.

Poderão os franceses eleger uma figura política isolacionista que mal disfarça suas propostas de retrocesso da integração europeia? A figura cujos principais aliados no mundo são da Internacional populista e xenofóbica? Ainda parece improvável, mas não é impossível.

 

[1] Tratamos da eleição de 2017 na “Será?” de 21 de abril de 2017, “Campanha eleitoral na França: o risco das previsões”.

[2] Examinamos essas manifestações, que tiveram alguma conotação neofascista, na “Será?” de 14 de dezembro, em “Qual a cor dos ‘coletes amarelos’?”.