Desde sempre, a humanidade vive em guerra, conflitos e disputas de interesses e de poderes, controle de território, saque e apropriação de riqueza. O que vem mudando através dos séculos são as armas, com o aumento acelerado do poder de destruição de vidas e dos ativos criados pela mesma humanidade. Desde o início do século XX, os países vêm tentando introduzir regras para impedir uma escala descontrolada da força destrutiva dos armamentos, como se pudessem evitar a guerra suja e moderar o sofrimento das vítimas militares ou civis. Acompanhando as mudanças tecnológicas das armas, diferentes convenções de nações foram acordando a proibição de determinados armamentos ou de procedimentos militares considerados sujos e desumanos.
Toda guerra é suja. É sempre uma insensatez abandonar a política e a diplomacia para mergulhar num conflito armado, com a utilização dos meios violentos, sangrentos, mortais, para resolver disputas ou impor interesses. Mesmo quando tenha a legitimidade da defesa contra a invasão estrangeira, como agora a Ucrânia diante da invasão das tropas russas, ou de luta de libertação nacional contra a dominação imperialista, a guerra será legitima, mas suja. Embora toda guerra seja suja e cruel, torna-se mais suja e desumana, mais letal e atroz, quando os inimigos utilizam armas de alto poder destrutivo no campo de batalha.
Não se pode falar de uma ética da guerra, de regras civilizadas para uma insanidade que nega e agride os avanços civilizatórios. No entanto, desde o início do século XX, principalmente depois da Primeira Guerra Mundial, várias convenções internacionais têm definido parâmetros e proibido o uso de determinadas armas de elevado poder destrutivo, e que podem ultrapassar os limites do campo de batalha, atingindo a população civil. Em 1972, a Convenção da Armas Biológicas foi o primeiro tratado multilateral que proibiu uma categoria inteira de armas. Embora sejam seguidamente desconsideradas, as convenções, especialmente a Convenção das Nações Unidas sobre Armas Convencionais, aprovaram o banimento de armas químicas e biológicas, armas incendiárias e cegantes a laser, minas e armadilhas, e têm, desta forma, reduzido as escaladas de destruição. Felizmente, os avanços tecnológicos têm permitido também aprimorar a capacidade de monitoramento e fiscalização da utilização de armamentos nas guerras convencionais mundo afora.
O mais recente tratado de controle de armas foi assinado na Convenção sobre Munições Cluster, realizada em 2008 em Dublin, assinada por 107 países que acordaram o banimento da bomba de fragmentação, conhecida como munição cluster, que se estilhaça em várias bombas menores e espalha o seu poder destrutivo por uma vasta área, que pode ir muito além do campo de batalha. Mais grave ainda porque, com frequência, essas bombas não explodem no impacto e deixam um rastro de contaminação explosiva no território.
No entanto, nesta semana, ignorando totalmente a resolução da Convenção de Dublin, os Estados Unidos decidiram abastecer a Ucrânia com um carregamento de bombas de fragmentação, para utilização na contraofensiva ucraniana contra a Rússia. Mesmo considerando o fato de nenhum dos três países (Estados Unidos, Rússia e Ucrânia) terem assinado o protocolo de banimento das bombas de fragmentação, e continuarem a produzi-las, a resolução da Convenção deveria ter um caráter mandatório, do ponto de vista moral. E a alegação, sem comprovação, de que a Rússia já estaria utilizando essas bombas na invasão do território ucraniano, invasão que foi condenada por resoluções das Nações Unidas, não justifica, moralmente, o suprimento das Forças Armadas ucranianas com esta arma altamente danosa. Apesar de ser a vítima nessa guerra, tendo, portanto, a legitimidade de resistir, a Ucrânia perde a simpatia internacional se utilizar essas bombas de fragmentação no campo de batalhas. E os Estados Unidos, fornecedores das armas de fragmentação ao exército ucraniano, demonstram desrespeito pelas regras internacionais, mesmo provocando conflito com vários países da OTAN signatários da Convenção.
Dos países dos BRICS, apenas a África do Sul assinou o protocolo. E o Brasil? Em 2008, quando da Convenção, o Brasil se recusou a assumir o banimento da bomba de fragmentação e, até hoje, passando por três governos do PT, um do MDB e o desastroso e militarista Bolsonaro, o Estado brasileiro continua fora dos compromissos da Convenção de Dublin. O Brasil é um dos produtores mundiais e exportadores dessa arma, tendo exportado, inclusive, para países em conflito, como Irã, Iraque, Malásia e Arábia Saudita, que utiliza a bomba na agressão militar ao Iêmen.
Como a coerência não é o forte do presidente Lula da Silva, ele tenta, neste terceiro mandato, apresentar-se ao mundo como o paladino da paz mundial e o mensageiro da pacificação na Ucrânia (de preferência com os ucranianos baixando as armas), mas mantém o Brasil fora de um importante tratado internacional, que pretende moderar o nível de violência e brutalidade das guerras. Desde 2008, quando foi assinado o tratado de Dublin, convergindo com as ambições das Forças Armadas, o governo brasileiro tem preferido apostar no desenvolvimento de uma indústria bélica no Brasil que, para ter escala, deveria exportar grande parte da sua produção. Agora, quando orienta o BNDES-Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social a financiar a exportação de tanques de guerra para a Argentina, com risco de calote, o presidente Lula está sendo coerente com a sua estratégia de fortalecimento da indústria bélica e da reindustrialização do Brasil.
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