Ditaduras também fazem eleições. E não é nenhum paradoxo. A realização de eleições regulares é um componente central da democracia. Mas não é suficiente para definir uma democracia que depende, antes de tudo, das condições institucionais em que se realizam os eventos eleitorais. As eleições são um componente central da democracia apenas quando ocorrem em condições de liberdade de imprensa e de expressão, direito e respeito às organizações políticas, sociedade e partidos com participação ativa no debate dos grandes problemas nacionais, e com instituições políticas e jurídicas independentes. Nada parecido com o sistema russo e ou venezuelano.
Com 87% dos votos, quase uma unanimidade, Vladimir Putin se reelegeu, nas últimas eleições presidenciais, para mais seis anos de poder, se aproximando da longevidade de Stalin. A Rússia de Putin não tem a virulência do despotismo stalinista, é verdade, mas está muito longe de ser uma democracia. A imprensa russa é controlada com rigor, as instituições estão subordinadas a Putin, os seus adversários políticos são presos, desaparecem ou morrem de forma misteriosa, como aconteceu um mês antes do pleito, com Alexei Navalny, o principal opositor de Putin, que estava preso numa prisão do Círculo Polar Ártico. O depósito de votos nas urnas, no dia das eleições, é uma farsa para enganar a sociedade e uma tentativa, sem nenhum sucesso, de neutralizar a desconfiança da opinião pública internacional. A Rússia não deixa de ser um sistema oligárquico autoritário porque realizou eleições e o eleito deve 87% dos votos, a farsa que o PT-Partido dos Trabalhadores, na sua cegueira ideológica, considerou um “feito histórico”, ao parabenizar Vladimir Putin.
Da mesma forma, as eleições presidenciais na Venezuela, anunciadas para julho próximo, serão um simulacro de democracia. Há 12 anos no poder, Nícolás Maduro seguramente será reeleito num país devastado pela crise política e econômica, quase sete milhões de venezuelanos refugiados. E por que ele será reeleito? Porque Maduro controla as instituições, censura a imprensa, persegue e prende opositores e ainda consegue impedir as candidaturas de oposição com reais chances eleitorais. A Venezuela tem centenas de presos políticos, a principal liderança da oposição, a deputada Maria Corina Machado, foi declarada inelegível e vários dos seus assessores estão na cadeia. Mesmo assim, cinicamente, Maduro afirma que a Venezuela é a maior democracia do mundo porque realiza muitas eleições, e o presidente Lula da Silva ainda andava defendendo o regime venezuelano. Só depois de o sistema eleitoral venezuelano impedir o registro de mais uma candidata da oposição, o governo brasileiro acordou da postura leniente com o autoritarismo do país vizinho. O Itamarati emitiu uma nota tímida apenas manifestando a preocupação com medidas que, segundo a nota, não eram compatíveis com o Acordo de Barbados de eleições limpas e livres. A postura tardia e excessivamente tolerante do governo brasileiro recebeu uma resposta grosseira e indignada da chancelaria venezuelana, afirmando que a nota do Itamarati parecia “ter sido ditada pelo Departamento de Estados dos Estados Unidos”.
O tema – ditadura e eleições – vale uma reflexão, agora que o Brasil registra os 60 anos do golpe de Estado que implantou a ditadura militar por mais de 20 anos (1964 a 1985), com censura à imprensa, proibição de partidos e de organizações (existência de um único partido de oposição), garrote no Legislativo e no Judiciário, prisões, exílios, torturas e morte de adversários. À semelhança da Rússia e da Venezuela de hoje, a ditadura militar brasileira também realizava eleições, os eleitores compareciam livremente às sessões eleitorais para votar. Eleições com regras autoritárias, as informações eram controladas, censuradas e manipuladas, apenas dois partidos oficiais podiam apresentar candidatos (os outros eram reprimidos) e os militares no poder ainda alteravam a legislação sempre que houvesse algum risco de perda de maioria no Congresso. Ao contrário da Rússia de Putin e da Venezuela de Maduro, é verdade, no Brasil da ditadura não eram realizadas eleições para presidente. E se fossem realizadas? Naquelas condições, não seria improvável que fossem eleitos os candidatos da ARENA, o partido da ditadura, até mesmo, alguns dos generais que foram presidentes-ditadores.
Rússia e Venezuela são modelos de “autocracias eleitorais”, segundo a definição do estudo da Universidade de Gotemburgo, regimes autoritários que toleram eleições para legitimar e consolidar o poder, mantendo ou reforçando os mecanismos de censura, controle das instituições, perseguição e prisão de opositores. Com o que tentam se perpetuar no poder. Democracia é outra coisa. É muito mais do que apenas eleições.
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