“A psicanálise é o fio que conduz o homem para fora do labirinto do seu próprio inconsciente.” Permitam-me que só mais adiante eu cite o autor dessa frase. Por ora, desejo apenas dizer que este artigo não é mais que um modesto e breve registro para assinalar os 85 anos de morte de Sigmund Freud, que faleceu em Londres em 23 de setembro de 1939.
“Brasil? Fraude explica!”. O espirituoso trocadilho é de um famoso cronista carioca: Carlito Maia. Evidentemente, a graça vem do fato de outra frase encontrar-se por assim dizer submersa sob a frase emersa: “Freud explica”, que no Brasil, pelo menos entre pessoas letradas, tornou-se um lugar-comum quando, à falta de explicações, busca-se um ícone (Freud) confiável para esclarecer uma questão difícil ou simplesmente sem aparente clareza. Com certeza, a frase “Freud explica” já foi mais usada, mas, gostando-se ou não do criador da psicanálise, o certo é que o nome de Freud continua popularmente lembrado.
Nesse sentido de popularidade e de influência, penso que o grande crítico literário Harold Bloom foi ao ponto ao escrever, em seu livro “Onde encontrar a sabedoria?”, que “[…] Vivemos, mais do que nunca, na Era de Freud […]. A influência freudiana só […] é comparável à de Platão, Montaigne, Shakespeare: inescapável, imensa […]”. Dentre estes, é Shakespeare, segundo o crítico norte-americano, ao utilizar sua própria teoria da angústia da influência, o antecessor com quem mais Freud rivaliza.
Em seu ensaio “Freud e o futuro”, Thomas Mann (ele próprio influenciado pelo pai da psicanálise) chega a sugerir que a influência de Freud se estenderá, como já indica o título de suas palavras, ao próprio futuro: na obra de Freud, diz o grande escritor alemão, “[…] se reconhecerá um dos pilares mais importantes de uma nova antropologia que se constitui de múltiplas maneiras hoje, e que sua obra é, com isso, o fundamento do futuro, da morada de uma humanidade mais sábia e mais livre. Ele será reverenciado como o precursor de um futuro humanismo […]”.
Já noutro ensaio, “O lugar de Freud na história do espírito moderno”, Mann nos fala na “alta legibilidade” da obra freudiana “[…] que se eleva da esfera clínica a uma visão ampla e audaciosa daquilo que interessa ao humano em geral […]”. Essa visão ampla tocou, como se sabe, em temas como a morte e o prazer, os sonhos e o desamparo, os complexos e a angústia, o inconsciente e os recalques, a crítica da cultura e os fundamentos da religião. Quanto à legibilidade, qualquer um de nós, ao ler a obra freudiana, testemunha como é franca a sua linguagem ensaística (Stefan Zweig, em seu “Freud”, fala-nos de um “desejo de clareza”). Por isso, Freud pôde dizer, em ótima entrevista a George S. Viereck (“A arte da entrevista”, org. de Fábio Altman), a frase-imagem com que abrimos este artigo: “A psicanálise é o fio que conduz o homem para fora do labirinto do seu próprio inconsciente”. É esse fio luminoso que fez com que sua clarividência apontasse para o estranho e até então inexplorado mundo do inconsciente, sem, ao mesmo tempo, deixar de nos ajudar a encarar e compreender, já sem a angústia da ignorância, as nossas dores psíquicas.
Naturalmente, a psicanálise não surgiu do nada. Nela ecoam Nietzsche (de quem Freud disse ser o primeiro analista), grandes poetas (Heine e Shakespeare, por exemplo), as culturas judaico e greco-romana, além evidentemente de sua formação médica em neurologia e da convivência enriquecedora com vários amigos, dentre estes os médicos Josef Breuer, Sándor Ferenczi e Jean-Martin Charcot, deste último tendo sido aluno, tradutor e colaborador em Paris.
É de Charcot uma frase que, salvo engano, parece repercutir o sexo (que não se confunde com o genital) na obra freudiana. O grande médico francês, nos seus embates com a histeria, costumava repetir: “Mas é sempre a coisa sexual, sempre!”. Freud, para desespero dos puritanos, e no dizer de Zweig, chamará as coisas pelo nome e, com “sangue clínico, frio”, examinará “todas as formas de manifestação sexual”. Em entrevista, na velhice, ao já citado George S. Viereck, insistiria: “Posso ter cometido muitos erros, mas tenho certeza de que não errei ao enfatizar a predominância do instinto sexual. Porque o instinto sexual é tão forte que se choca com muita frequência contra as convenções e salvaguardas da civilização. A humanidade, em defesa própria, procura negar a importância suprema do sexo”.
Freud pôde “explicar” nosso psiquismo profundo porque levantou muitos véus, desafiando, em meio a uma tremenda solidão, os costumes e as convenções, mas, ao mesmo tempo, ficando de olho na tradição e na História. Por isso foi um “iluminista sombrio”, “liberal e conservador”, como observa Elisabeth Roudinesco em sua biografia. Num mundo tão fértil em salvadores, curandeiros e charlatães de toda espécie, Freud, para usarmos uma expressão de Zweig, foi um “incurável desilusionista”, o que é, como sabemos, inadmissível e imperdoável!… Ele mesmo disse, ao perceber a importância vital do inconsciente, que “O homem não é senhor em sua própria casa” (o inconsciente inviabiliza a pretensa soberania do Eu), eis o que chamou de “a terceira ferida narcísica da humanidade”; as outras duas vinham de Copérnico e de Darwin, que, com suas teorias, também expulsaram ou deslocaram a centralidade do ser humano na História e no cosmos. Não por acaso, em Berlim, os nazistas queimaram seus livros “obscenos” ao lado de obras como as de Thomas Mann, Robert Musil, Proust e Marx. Ainda de sua casa em Viena (em 1938, já muito idoso, exilar-se-ia em Londres), Freud não resistiu à ironia: “É um progresso, na Idade Média teriam queimado a mim!”.
O criador da psicanálise morreria na Inglaterra, vitimado por um câncer na laringe, em 23 de setembro de 1939. No dia primeiro daquele mês, a Alemanha invadira a Polônia: começava a Segunda Guerra Mundial.
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