Extrema direita nos EUA

Extrema direita nos EUA

“O progressismo do século XIX postulou, fiel ao “Siècle des Lumières”, que a razão eclipsaria a crença, que o presente apagaria o passado para produzir um futuro puro de toda reminiscência… O que é muito difícil para um homem de esquerda, hoje, é pensar verticalmente e não horizontalmente. Ou seja, deixar de pensar que há um desenvolvimento linear, o qual, na medida que avança, suprime aquilo que lhe está atrás e, de repente, nós vemos que, aquilo que está atrás, pode estar na nossa frente.” — Régis Debray

Bolsonaro será sempre visto como herói salvacionista pelos seus seguidores. As mímicas de agonizantes com espasmos de asfixia pelo COVID ou de atirador disparando balas contra “inimigos” em evento evangélico, entre inúmeras outras barbaridades, passam ao largo das circunvoluções cerebrais de seus adeptos. Talvez fosse aplaudido se, abandonando o simbólico, abatesse fisicamente opositores com granadas.

Alain de Benoist, filósofo de extrema-direita francês, fez a releitura de Gramsci no livro Pour un Gramscisme de Droite, no final dos anos 1970. Afirmava que o combate para recuperar os valores ocidentais e cristãos não se situava mais no terreno político, mas no cultural. Era necessário enfraquecer o monopólio cultural que beneficiava a esquerda na época. A estratégia de “reconquête intellectuelle” dos espíritos pela intitulada Nova Direita seria de longo prazo e não eleitoral. A prioridade daquele momento não era a construção de um partido de militantes aguerridos. “Todas as grandes revoluções da história nada mais fizeram do que transpor para a realidade uma evolução já realizada, de forma subjacente, na mente das pessoas”, escreveu Benoist em 1979.

Benoist propunha disputar a hegemonia cultural como antídoto ao fato de que os valores da extrema-direita se tornaram inaudíveis após os horrores do nazismo e fascismo. O objetivo seria reintroduzir os antigos argumentos, porém adaptados às condições atuais, tornando-os aceitáveis e distantes das condições anteriores. Reconfigurar a narrativa atualizando, em todo o Ocidente, ideias e conceitos, editando revistas, publicações, criando think tanks, de modo a gerar uma linguagem palatável, susceptível de sensibilizar a população aos valores tradicionais, inclusive a direita institucional, conservadora e democrática.

Como é possível constatar, essa estratégia está sendo coroada de sucesso meio século mais tarde em vários países. O arcaísmo voltou à cena política com nova roupagem, para a surpresa da esquerda, que jamais suspeitou que ele retornaria à tona, impregnada de concepções evolucionistas cujo paradigma é a civilização ocidental.

Em outro registro, a ação dos evangélicos, ao propor valores conservadores ao imaginário religioso de sua grei, veio ao encontro dos propósitos da extrema-direita. Juntou a fome com a vontade de comer. Seguramente, não leram Gramsci, mas ambas as correntes arcaicas estão colhendo os frutos da hegemonia por caminhos distintos.

A somatória do arcaico profano com o arcaico religioso engendrou uma argamassa resistente, insólita e perigosa. A esquerda tem dificuldades para sair da defensiva, encontrando igualmente dificuldades frente ao inesperado e impensável. Sem falar que a humanidade enfrenta graves problemas que já estão presentes em nossa antessala: desregulação ecológica, desigualdades, concentração da riqueza justamente quando a produção e o consumo de bens e serviços alcançaram níveis exponenciais jamais vistos na História; descrédito dos valores democráticos e humanistas, dentre outras questões detonantes. É necessário unir todas as correntes humanistas para combater os valores arcaicos, tanto mais que o futuro nos reserva dias sombrios.

TTT

Ver bibliografia: Razmig Keucheyan, Tamir Bar-On, Daniela Mussi, Álvaro Bianchi, Francisco Thiago Rocha Vasconcelos.