Franz J. Brüseke

Franz J. Brüseke

“Berlim não responde” é o primeiro romance de Franz J. Brüseke que sai em português (Ateliê de Humanidades, fevereiro de 2025). O original alemão dá o que pensar há algum tempo. Esta versão em português é do próprio autor. É um “romance de estrada”, e o caminho percorrido é longo, boa parte a pé, um trecho dos mais horrendos em navio, andam de ônibus por pedaços do Brasil ainda selvagem. Começa em algum lugar da Alemanha no que deve ser mina de carvão há muito desativada, vai de uma ponta a outra da Alemanha, chega ao mar em La Rochelle, sudoeste da França, e daí em alto mar até a Guiana Francesa e ao Oiapoque, passa pela Amazônia em rios e terra batida, chega ao fim em algum vilarejo de imigrantes alemães no sul do Brasil. 

Quando a viagem termina, as mariposas tropicais perdendo as asas, atraídas pelas velas na igreja do vilarejo brasileiro, lembram ao forasteiro as borboletas da neve que viu adolescente ao escapar do fundo da mina. O garoto de então dependeu para sobreviver dos companheiros de viagem, estranhos que se juntaram por acidente. Agora é um adulto que chegou sozinho, deixou para trás os companheiros que o decepcionaram.

Irá partir de novo? Pois nesse “romance de estrada” os personagens que partem de um lugar nunca sabem onde vão chegar em seguida, nem que situação terão que enfrentar. Não é a estrada o assunto do livro, ainda que a paisagem possa amedrontar. O que interessa são as peripécias e reações desses fugitivos, e das pessoas que encontram.

Houve crítico europeu que falou do livro como distopia. De fato, o ponto de partida para a aventura da sobrevivência dos personagens é distópico, ainda que o caminho da fuga pareça realista, mesmo se causa espanto. É distopia de tons por demais realistas, não é sequer “science fiction” de sociólogo. Até soube outro dia que hospital subterrâneo (como o da mina em que começa o livro) é algo que já existe numa zona de guerra. Na verdade, andamos tão atônitos com o desenrolar dos acontecimentos deste mundo nos últimos meses que é o caso de indagar: o que podemos fazer para que o romance continue distopia e não se transforme em premonição? Bom ligar para Berlim de vez em quando para ver se ainda responde…

Pois o romance de Brüseke apresenta com realismo, mais irônico do que fantástico, as consequências do que foi talvez o uso descuidado de armas atômicas. Esta uma ilação, pois em nenhum momento da fuga se sabe exatamente do que escapavam, de que tipo de irradiação. Vem do leste, onde os primeiros a chegar ao hospital subterrâneo tinham ouvido um estrondo e imensa nuvem vermelha. E é para o oeste a rota de fuga. Mais adiante chegam a encontrar tropas militares na estrada, mas evitam contato: sabe-se lá que documento lhes iriam pedir, que não têm, fogem com pouco mais que a roupa do corpo.

O livro é sinal dos tempos, tanto quanto já foi o Prêmio Nobel da Paz 2024 para Nihon Hidankyo, organização japonesa formada por sobreviventes dos bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki, para lutar pela abolição das armas nucleares. Mas não é panfleto, é um belo romance, flui bem, pelos atos, falas e angústias dos personagens, um tremendo suspense, e um quê de tragicomédia. Claro que uma história que transcorre como se tivesse começado a III Guerra Mundial faz de “Berlim não responde” um romance político. Mas na frase de efeito de Poul Henningsen que tanto cito, ”toda arte política é ruim, toda boa arte é política”, Brüseke está na segunda categoria.

Através do que percebem os personagens, o escritor tem fantásticas tiradas críticas, mais ou menos indiretas. E considerações filosóficas e religiosas também, via pensamentos, conversas e reações dos personagens, bem construídos com uma identidade bem própria de cada um. Tão bem caracterizados que a gente lembra deles. O narrador adolescente que vai se tornando adulto é o mais meditabundo, pensativo sem senso prático. Eric arranjando comida para todos eles não se esquece. Até por sua força bruta na horrenda batalha por comida que se instala no navio francês e no desembarque, ou antes fazendo churrasco com o veado agarrado no parque central de uma das cidades alemãs pelas quais passam. Mas será o vale tudo o que garante a sobrevivência? Pois é Gisela que consegue que embarquem no navio (porque fala francês), e que não sejam barrados em Oiapoque por falta de documento (porque é linda). É pelos mapas que Gisela arranjou que chegam a Belém do Pará.

Claro que tem alguma cena tenebrosa, mais que todas a inicial, no hospital provisório, quando os irradiados que não sobrevivem são higienicamente ensacados e jogados para o fundo da mina. Não desistam no primeiro capítulo, porque vale a pena continuar. Sempre haverá façanhas inusitadas nos novos pontos de chegada. É uma grande aventura com mocinhos e bandidos, e não se sabe bem se os mocinhos não viraram bandidos, quando se salvavam apenas os que tivessem mais capacidade de conseguir a própria sobrevivência sem se dar ao luxo de muitos escrúpulos. Vale ler porque é boa literatura, e o autor que vive no Brasil há 30 anos conhece o país como poucos, inclusive já viveu no norte e nordeste brasileiro (que aparece em outros de seus romances).

Paradoxalmente, mesmo distópico, é ainda o que críticos literários chamam de “Bildungsroman”, é em certo sentido um romance de formação, pois quando começa, o narrador sem nome e personagem principal é um jovem adolescente que só sabe ficar diante da TV comendo amendoim, é salvo pelo médico para ajudá-lo a cuidar de doentes. E no último capítulo esse narrador virou adulto, sabe cuidar ele próprio de sua sobrevivência. Foi aprendendo pelo caminho. E não foi pouco. Perdas (como o médico que ficou pra trás sem forças para correr), desilusões, atos que tomou como traições, enganos de interpretação da atitude da companheira de aventuras dez anos mais velha que ele. Observador ingênuo, pensativo, parece que sofre mais que os outros com cada desapontamento.

Relembro dois ou três recortes desse curioso romance alemão no Brasil. Há neles algo de realismo fantástico. Por exemplo, na visita dos três viajantes ao Consulado Alemão em Belém, onde finalmente obtêm um passaporte alemão provisório, de uma consulesa que já não recebe salário nem comunicação de Berlim e está de partida para o sul do Brasil para morar com familiares. Ainda em Belém do Pará, quando começam a pensar em como se instalar no Brasil, procuram uma Universidade em Belém, e ali são encaminhados ao Instituto de Altos Estudos Ecológicos. Presenciam uma reunião surreal (uma cena que vale o livro!), e saem sem nada de útil.

Num desses barcos que existem por lá nos rios amazônicos, encontram Novak, funcionário de órgão de assistência técnica alemã e entusiástico ecologista, tipo missionário, e acabam chegando a um projeto ecológico semiconstruído e abandonado no meio da floresta. Erik e Gisela vão dar um uso prático ao que já está pronto, reanimam o projeto junto com os caboclos. Gisela vai alfabetizar as crianças (ela já estava aprendendo português em Belém). Aparece com uma surpresa, e mais surpreendente ainda é a dor que isso causa ao companheiro de viagem mais jovem, que sequer reconhece que havia se apaixonado por Gisela. Enquanto Gisela dá vida à escola, sem livros que não sejam uma bíblia perdida, Novak prossegue cada dia mais desesperado em suas tentativas de obter contato com Berlim para receber instruções e dinheiro para o projeto. Pois os capítulos “Rio Acima”, “O Projeto ecológico” e “Berlim não responde”, em veia irônica e até cômica, talvez sejam uma imensa piada (condensada em Novak) sobre os programas de cooperação técnica e transferência de tecnologia entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos em décadas anteriores. 

Não se fiem no meu esqueleto de resumo. As descrições de Brüseke são superdivertidas. E graves. De resto, insisto: espero que com o passar do tempo o romance permaneça distopia e não vire premonição.