Uma luz abre suavemente o cenário. Deitada sobre um monte de barro vermelho começa a surgir a silhueta sensual de um corpo de mulher. É uma jovem e bela mulher, que durante uma hora meia irá nos emocionar representando Camille Claudel, a genial escultora francesa abandonada por Rodin, seu mestre e ex-amante, que após surtos psicóticos é trancafiada em um manicômio onde irá viver seus últimos anos de vida. Foram trinta anos internada, na maior parte do tempo, sedada e amarrada em uma cama.
Ceronha incorpora de forma surpreendente Camille aprisionada em uma relação de amor-ódio por Rodin, realidade que, para ele, já fazia parte de um passado, mas para sua loucura era o seu alimento diário. Sabia-se genial, e de fato era, tanto que alguns historiadores comparam suas obras com a mesma qualidade do seu famoso mestre.
A peça de Ceronha explora com intensidade inusitada o drama e a angústia de uma alma que navega, a cada instante, entre o delírio e a dura realidade em que ela, Camille, vive seus últimos anos de vida. Seus mecanismos de defesa, se é possível identificá-los, era lembrar-se da sua infância em Villeneuve brincando com a argila vermelha em busca de desenterrar ‘diabinhos’ na areia. Em outros momentos delira, vendendo suas obras para um público imaginário onde a atriz nos puxa, de forma hábil e corajosa, para o centro da peça. Somos de fato, parte concreta dos seus delírios e suporte para sua atuação. Comemos com ela, sofremos e nos assustamos com a intensidade do seu sofrimento. É possível ouvir risos nervosos na plateia, certamente reflexo de algum efeito que a atuação desta jovem e talentosa atriz provoca em nosso espírito.
Mesmo quem não conhece a vida de Camille Claudel, no desenrolar do monólogo os recortes da sua vida vão se desvendando, num fluxo diacrônico, tecido pelo presente e o passado, pelo choro e o riso, motivado pelas lembranças que escapam do pesado manto dos fortes sedativos.
Sempre foi assim na história da loucura, aquilo que foge à “normalidade” em um comportamento que nos causa estranheza deve ser aprisionado, afastado e forcluído da nossa existência, pois, como seres constituídos na relação especular com o outro, é insuportável para nós, “normais”, ver-nos diante de um outro que não corresponde ao que achamos que somos. O discurso psicótico nos aterroriza porque ameaça nossa frágil percepção de nós mesmos. Nos desestabiliza das nossas certezas de ser.
A força impulsionadora da peça é exatamente essa instabilidade no discurso da personagem; momentos de extrema lucidez, beleza e sensibilidades alternados com a loucura de seus delírios, único suporte psíquico possível para não afundar na pura angústia. Ali onde a linguagem não chega, onde há apenas sofrimento.
Ceronha chora, rasga as vestes, grita num esforço de interpretação que se leva ao limite das suas forças, e da nossa também.
Para minha surpresa, ao final, ela revela que esta era a segunda sessão na mesma noite.
A atriz cearense lembrou-me uma Marília Pera jovem – há muito tempo – com o mesmo talento, e uma madura coragem para interagir com a plateia e se entregar como quem se lança num abismo, num mergulho profundo na alma da personagem. Um desafio para poucos.
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A Peça “Camille Claudel” está em cartaz no Teatro Eva Herz até o dia 8 de dezembro de 2013, Livraria Cultura do Rio Mar, em Recife.
Vi e também me emocionei. João captou muito bem a sensibilidade e a riqueza de interpretação apresentada. Parabéns a Ceronha e ao texto.
João,
Acabo de chegar do teatro. Já tinha lido tua crítica, o que me motivou a assisti-la. Seria melhor dizer, a participar dela. Pois somos instigados a entrar no palco com a fantástica atriz. Meu vizinho de cadeira recebeu uma carta para a família Claudel e se surpreendeu, ao sair da sala de espetáculos, ao ver que a carta era de verdade. E eu disse meu nome para ser anunciada por ela, como suposta visita, a uma das internadas no manicômio. Seria Helene seu nome? Um café depois, para continuar no clima intimista da peça, com pessoas cuja identidade se deu a conhecer ali, na impossibilidade de voltar logo para casa. E, já em casa, releio tua crônica. Melhor lida depois.
Teresa