Animais

Animais

Em novos tempos sombrios, nos quais neofascismos assombram o mundo, não surpreende que os animais estejam sob ataque e em grande perigo. Refiro-me, sobretudo, aos sencientes, a muitos dos quais o ser humano deve, em certo sentido, a própria vida. A humanidade os atraiu para seus próprios abismos. Há muito, foi-lhes imposta uma passividade recorrente como se fossem seres de segunda classe ou simples objetos. Pior: há muito, a crueldade acompanha práticas que os impedem de “florescer”, como diria (em seu denso e belo livro “Justiça para os animais”) a filósofa americana Martha Nussbaum; “florescer”, isto é, viverem plenamente, sem maiores impedimentos, o seu destino, com suas potencialidades e seus direitos. 

Ainda que de uma forma nascente, essa justiça “animal” vem pouco a pouco progredindo. Desde pelo menos 1975, com o trabalho do filósofo Peter Singer, diversos nomes ilustres da filosofia, do direito e da ciência mundiais têm se aliado a esse avanço civilizatório. A filósofa, também americana, Christine Korsgaard, por exemplo, vai buscar em Kant o fundamento de sua abordagem, que se pode traduzir nestas simples palavras: os animais, a exemplo de cada ser humano, devem ser tratados como um fim em si mesmo. Enfim, qualquer que seja a abordagem da questão, com inclusão de mais ou menos direitos, o importante é que o ser humano não se ponha “no centro” ou “no alto”, na tentação de se colocar acima das demais espécies.

Voltando aos nossos tempos sombrios, em particular ao brasileiro, realço que, neste exato momento, duas legislações que protegem os animais estão em risco. Segundo o perfil Congresso em Fogo, do Instagram, “O deputado Capitão Augusto (PL-SP @capitaoaugustooficial) propõe liberar animais em circo em todo o País, desde que sejam cumpridas normas rigorosas de bem-estar e fiscalização”. Como se sabe, não há uma lei nacional que proíba a utilização de animais em circo no Brasil, só leis estaduais (salvo engano, existentes em doze estados). Enfim, o circo pode pegar fogo, mas justamente do lado dos animais. A abertura para a crueldade e os maus-tratos não só está posta na cabeça da lei, mas igualmente ou sobretudo na ressalva: “[…] desde que sejam cumpridas normas rigorosas, etc.”, o que vem a ser, como diz velho ditado, a manteiga no focinho do gato, ou seja, praticamente uma ilusão. “Acreditar” nisso num país em que a fiscalização é habitualmente ineficaz e milhões de pessoas vivem em condições desumanas!… Logo se vê que é lei que merece queda e coice!

Segundo o site da Agência de Notícias de Direitos Animais (Anda), há também o Projeto de Lei nº 273/2025, da vereadora Zoe Martinez (do PL), em São Paulo, que prevê a volta da prática de rodeios, contrariando a legislação existente que a proíbe e foi sancionada pelo então prefeito Paulo Maluf, em 1993. É evidente que o rodeio causa estresse e maltrata os animais, inclusive com choques elétricos. O certo é que tão garantido quanto o sofrimento dos animais é o retorno financeiro de tal empreitada.

Por sua vez, as vaquejadas nordestinas, embora proibidas em 2016, voltaram a ser permitidas em 2017, pelo Congresso Nacional, como “esporte equestre” e “Patrimônio Cultural do Brasil”. Como se vê, o País patina em levar a sério o que, com menos ignorância e mais compaixão, poderia ser um avanço. Essa desculpa de “tradição cultural”, invocada para justificar vaquejadas e rodeios, deve ser rechaçada. Martha Nussbaum, no ensaio já citado, lembra-nos que “Todos os tipos de más práticas são altamente tradicionais: por exemplo, violência doméstica, racismo, abuso sexual e, claro, a tortura dos animais. O fato de essas práticas existirem há muito tempo não é um ponto a seu favor. Se a tradição tem força normativa, seus defensores devem se esforçar mais para dizer que força é essa”. A filósofa recorda que, embora os valores nazistas estivessem enraizados na cultura alemã, nem por isso essa cultura sofreu um colapso quando o nazismo foi erradicado; e ainda cita o Lorde Devlin, que, em 1958, afirmou que “[…] a cultura britânica não sobreviveria sem proibições legais de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo”. Sem comentários! 

Em suma, que importa uma “crueldadezinha” com os animais se, em nome de uma “tradição cultural”, podemos fazer ótimos negócios, ganhar muito dinheiro e ainda levar diversão e “cultura” ao nosso povo?  

É preciso um grande e imediato “não” a qualquer tratamento vil e degradante dispensado aos animais. Dizer “não” aos retrocessos acima referidos e a outros que possam voltar ou ocorrer.  Por que valeriam menos do que nossos amados cães e gatos domésticos o touro, o cavalo e o boi que sofrem dores atrozes em sádicos rodeios e perversas vaquejadas? Já passou da hora de sepultarmos em covas fundas esses pseudoesportes e essas tradições de quinta categoria. Coice neles! A bela e forte cultura brasileira não precisa disso.