Comentário sobre o filme com direção e roteiro de Michael Wahrmann, Avanti popolo
26 de junho de 2014
Dia chuvoso, friozinho, final de feriadão (que juntou duas importantes festas: de todos os brasileiros – jogo do Brasil na Copa do Mundo; e dos nordestinos – festa de São João), a terça feira foi um dia perfeito para ficar em casa, curando a ressaca das festas na rede com um bom romance. E que festas! Antecipamos a fogueira e o forró para o domingo (fazia tempo que eu não brincava um São João tão bom), ficando a véspera do santo só para o Brasil, que se vestiu de azul/verde/amarelo para a comemoração da vitória contra o time de Camarões.
Passei o feriado da terça 24 disputando com a chuva uma trégua para a caminhada no calçadão. A chuva venceu. Foi aí que surgiu a ideia, já noite: o shopping só está aberto para restaurantes e cinema. Fiz lá minha caminhada, comi um bom sanduíche e fui ao cinema. O contraste entre as festas e o enfado de um shopping center com corredores vazios já era enorme. Maior ainda, contudo, o contraste entre a euforia da véspera e o clima melancólico do filme que fui ver.
Para quem gosta de filme leve ou de entretenimento, recomendo: não vá assistir “Avanti popolo”. É o que há uns tempos chamavam de “filme cabeça”. Porém, para quem gosta de cinema, vá correndo ver o filme, pois só está em cartaz em um cinema e num único horário.
Éramos sete expectadores espalhados na sala do cinema. Não tocou celular, ninguém com as malditas pipocas, respeitoso silêncio. A apresentação dos primeiros créditos é feita em cenas de road movie: ouvimos apenas o barulho do motor do carro e vemos as casas e ruas estreitas de um bairro de classe média baixa da Grande São Paulo, que vão sendo iluminadas pelos faróis do carro velho. Ruas quase desertas, noite com casas dormindo, luzes da iluminação pública. Até que o automóvel é obrigado a parar ante um pedestre que caminha pelo meio da rua carregando uma mala. O carro buzina. Ele não para e continua andando. Até se virar para a câmera subjetiva do carro e levantar a mala como se fosse jogar na câmera (ou em nós, o público do filme).
O dia principia a amanhecer quando o personagem André (André Gatti) chega ao seu destino, uma casa feia e com camadas de pintura desmanchadas por anos e anos sem uma mão de tinta. Adentra a casa e encontra o pai sentado num sofá com o cachorro ao lado. Uma cena de total desolamento. A sala, igualmente parada no tempo, escura (a janela que dá pra rua está quebrada e não abre), um sofá e uma poltrona velhos e empoeirados, uma cristaleira com copos embaçados e velharias sem uso. Nenhuma efusividade no encontro. O filho sugere levar a mala para o quarto e o pai determina que ele ficará no sofá porque o quarto está trancado. Depois saberemos porque.
O filme quase não tem diálogos. O expectador vai entrando no clima de melancolia que se aprofunda até o final do filme, pela trilha sonora, pelos resmungos do filho e a comunicação do pai com a cachorra baleia (possivelmente, uma citação do livro/filme Vidas Secas).
O ator que faz o pai, Carlos Reichenbach, está perfeito no papel de um velho desiludido com a vida. Seu único vínculo com o mundo é através da cadela Baleia, a quem leva todo dia para a frente da casa; e da sua saída eventual à delegacia de polícia para saber notícias do filho, desaparecido pela ditadura militar há trinta anos, depois de morar um tempo na antiga União Soviética. Ele passa ao largo dos movimentos caseiros do filho quarentão (retornado ao lar possivelmente após um casamento acabado) que, no meio das quinquilharias da casa, descobre um passado estagnado no tempo. Velho disco de vinil com músicas revolucionárias russas, fitas cassete, rolos de películas Super 8 filmadas pelo irmão com cenas familiares, cenas cheias de neve na Rússia.
As cenas desses filmes são apresentadas aleatoriamente como parte constitutiva desse passado estagnado. Pouco saímos da decadente e desarrumada sala de entrada da casa. E quando saímos, é para acompanhar o trajeto do pai tomando o ônibus que o levará à delegacia, ou do filho levando o velho projetor quebrado e as fitas de Super 8 para serem consertadas. O motorista do taxi e o técnico da loja de consertos não fogem ao clima do filme, onde um toque de ironia se imiscui com a melancolia. A ironia, aliás, começa com o próprio título do filme.
Como foi assinalado por alguns críticos afeitos á arte cinematográfica, o clima melancólico do filme é proporcionado pelo tipo de filmagem: com apenas um plano para todas as cenas, o filme é composto em ritmo lento, “como um tempo que se arrasta a passar”.
Não é um filme para se assistir, para acompanhar um enredo. É um filme que se sente. Pude observar na fisionomia dos outros seis expectadores e até na minha própria, quando me olhei no espelho no banheiro do cinema na saída do cinema. Esse é o primeiro longa de Michael Wahrmann. Mais um bom cineasta brasileiro (na verdade, uruguaio-israelense radicado em São Paulo) que desponta entre tantos.
Encerro meus comentários citando parte da melhor crítica sobre o filme, de José Geraldo Couto:
“É, de certa forma, um filme sobre a morte: a morte das utopias, a morte do cinema (ou de um certo cinema), a morte mais que provável do filho desaparecido.
Mas há uma morte ainda mais palpável que paira sobre tudo. A presença do cineasta Carlos Reichenbach (1945-2012) no papel do pai solitário acrescenta uma camada pungente de significação. Para quem o conheceu, Carlão encarnou como ninguém a paixão do cinema, sobretudo do cinema mais radical e libertário.
No filme, em total consonância com o papel, ele aparece abatido pela tristeza e pela doença cardíaca que o levaria alguns meses depois. Sem os óculos de fundo de garrafa que costumava usar, ele está com o olhar perdido, como se contemplasse um outro mundo, um tempo fora do tempo. É esse olhar, em mais de um sentido, que o filme de Michael Wahrmann procura captar.”
Teresa,parabéns pela resenha do filme; está especializando-se em boa resenhista. Posso até sentir o clima nostálgico, o ambiente e o peso do enredo, acrescidos pelo fato de sabermos da morte do pai tão pouco tempo após a filmagem. Sei não, se vou.
Abraços, Ângela Carolina