Quando estudante de colégio marista, em João Pessoa, rezando o terço todo dia, li, em algum compêndio, que o catolicismo, diferentemente de outras religiões, não se contrapunha ao conhecimento científico. Pelo contrário, consolidava-se com as suas descobertas e conquistas. Mas logo compreendi que não era bem assim.
Numa ótica estritamente racionalista, podemos observar que, inversamente, a religião é que tem evoluído, adaptando-se ao avanço da ciência. Passamos do politeísmo, dominante em todos os povos primitivos, para o monoteísmo, e, já dentro deste, do antropomorfismo para a moderna concepção de um deus como puro espírito de luz, princípio de todas as coisas.
É compreensível que assim ocorra. No tempo e lugar do surgimento das grandes religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo – não havia ciência, muito menos medicina. Portanto, tudo o que acontecia às pessoas, envolvendo sua saúde física ou mental, só podia ser atribuído a poderes sobrenaturais. Qualquer profeta que falasse em nome desses poderes merecia crédito e conquistava adeptos. Se hoje sabemos que a maior parte das doenças pode ser curada pelo próprio organismo humano, independentemente de remédios, naquele tempo as curas eram sempre milagrosas. E o milagre está na base das religiões e da fé dos fiéis em seus santos.
Os séculos se passaram, as conquistas da ciência deram-se de forma vertiginosa, e o espaço dos taumaturgos foi-se reduzindo. Hoje, embora seja tema recorrente no cinema, e mesmo em certo tipo de literatura, rendendo bons lucros aos que o exploram, muito poucas pessoas acreditam em casos como o de possessão demoníaca. E os milagres, ainda formalmente exigidos para as canonizações, são de prova cada vez mais duvidosa. A religião recolheu-se ao seu nicho de pura espiritualidade.
Mas como estabelecer, agora, uma convivência pacífica entre ciência e religião, dando conforto àqueles que têm a necessidade psicológica de crer no sobrenatural? Stephen Jay Gould, americano, e Richard Dawkins, inglês, são dois cientistas que podem nos dar uma resposta conciliatória. Os dois, além de bons escritores, têm uma sensibilidade especial para as conexões da ciência com os problemas sociais e humanos: Gould, já falecido, era filho de um dirigente de partido comunista, e Dawkins nasceu no continente africano, no Quênia.
A proposta de Gould é a dos “non overlapping ministeria” (ministérios não imbricantes). A ciência cuida das coisas prováveis, a religião das coisas do espírito. Para a ciência, como nos ensina o saudoso professor Aluízio Bezerra Coutinho, nossa “prata da casa”, tudo precisa ser provado, menos dois postulados básicos: que existe uma realidade externa a nós, e que podemos, com os nossos sentidos e cérebro, captá-la e interpretá-la. Na religião, só a fé é exigida, e a convicção se dá pelo argumento “ad autoritatem”: a verdade está no que dizem as escrituras, os santos e os teólogos.
Da parte de Dawkins, menos conciliador, há ainda a exigência de que uma disciplina não invada, em nenhuma hipótese, o terreno da outra. E ele se apressa em apontar que, no caso da imposição dos milagres como realidade, a religião invade o campo da ciência.
Estamos pois, crentes e incréus, entendidos sobre esta melindrosa matéria. Só espero que nenhum devoto receba de forma passional estes tópicos de reflexão, ao ponto de prescrever, contra seu autor, “fatwas” ou maldições, que já não podem ter lugar em nosso tempo.
***
Clemente: Lendo este artigo da série que você está escrevendo, de repente me ocorreu pensar que com frequência concordamos com relação às premissas, mas divergimos nas conclusões. As suas me parecem no geral demasiado otimistas, fugindo por vezes ao teste das evidências. Para começar, o catolicismo, a religião em geral, foi hostil à ciência. A história de ambas está cheia de exemplos que você conhece muito bem. Que o digam Giordano Bruno e Galileu, celebrados em obras de arte. Hoje o catolicismo é mais conciliador porque perdeu seu poder de governo secular.
Seu progressismo humanista e secular lembrou-me os “pensadores da suspeita”: Marx, Nietzsche e Freud. O primeiro e o último acreditaram que o progresso da ciência conduziria à superação da religião. Basta lembrar o ensaio O futuro de uma ilusão, de Freud. Ora, é certo que a visão secular progrediu extraordinariamente, fruto das sucessivas revoluções da ciência. Mas quem hoje nega a religião e Deus é gente como você e eu, Clemente. Nos próprios círculos científicos há grandes cientistas que encontram um jeito de conciliar ciência e religião. Não acho que a visão secular tenha progredido tanto quanto Marx, Freud, Weber e outros previram. O mundo continua cheio de seitas religiosas, fanatismo e intolerância. O que não falta no Brasil é mercador da fé, que confunde Deus com loteca, rock e toda tipo de mistificação imaginável. Não subestimo o irracionalismo humano. Além disso, a maioria dos seres humanos parece incapaz de suportar a realidade sem a âncora de uma ilusão consoladora: Deus. É verdade que a ciência tem desmontado uma infinidade de supostas provas e materializações da existência divina. Mas ela não tem e nunca terá resposta para as angústias e incertezas humanas metafísicas. A própria filosofia não tem essas respostas. Por isso filósofos rigorosos e geniais como Wittgenstein afirmaram que a filosofia deve se calar sobre o que não pode responder. Um abraço, Clemente. Seus artigos sempre me fazem refletir proveitosamente.
O BOM DE TUDO ISSO E QUE CRESSE NO MUNDO O NUMERO DE ATEUS
De fato, Fernando, concordamos no essencial, e seus comentários enriquecem as minhas reflexões. Divergimos apenas, digamos, no “estado de espírito”. É certo que a superstição anda galopante, em nossos dias, mas não há por que decretar que será sempre assim. Prefiro ser otimista, e verificar depois que estava errado, do que ser pessimista e verificar que estava certo. O negativismo desarma para a ação construtiva.
Meu caro Clemente Rosas.
Importante, demais, o seu escrito de hoje, pela divergência de pensamentos sobre o problema religião/ciência. Como estamos no Séc. XXI e, mais que certo que ambas caminhem de mãos. Li, perdoe-me, não gravei o autor, que disse o seguinte: …na verdade, o Big Bang existiu mas, existiu Uma Mão Superior que apertou o gatilho…
Aguardo para ler você, na próxima semana.