A globalização atesta fim e começo. Fim do ciclo industrial. Começo da era da informação. Mas a perspectiva enseja a pergunta: a nova configuração produtiva ajuda a atenuar o problema do desemprego? E garantir proteção social?
No século XX, o capitalismo foi construído tomando por base a empresa industrial. Em torno dela, selou-se acordo corporativo unindo empresários e operários. A indústria foi a unidade fabril que fixou aliança entre operação econômica e questão social. Nesse contexto, jornadas de trabalho são cumpridas, salários são pagos, produtos são fabricados e proteção social é garantida.
No século XXI, com a economia pós-industrial e a sociedade de serviços ocorreram três fatos:
1 a globalização;
2 a revolução tecnológica;
3 a terceirização e a modificação do contrato típico de trabalho.
Nessa nova formatação econômica, as relações produtivas enfraqueceram a aliança, fundada na indústria, entre empresários e operários. Deixou de existir a solidariedade orgânica, de que falava Durkheim, selada na fábrica. Na década dos 50, a Renault fabricava 80% do carro entregue. Atualmente, esse percentual caiu para 20%.
É que ingressamos, agora, na economia de serviços. Na qual os paradigmas são outros. A organização produtiva é outra. Há fragmentação na oferta da produção. Não há mais centralidade da indústria. Há diversificação produtiva distribuída no terciário moderno.
Se analisarmos a desigualdade, nos últimos setenta anos, veremos que ela diminuiu no período de 1945 a 1979. Essa redução ocorreu principalmente por causa da adoção do Estado do Bem-Estar Social, praticado pela social democracia europeia.
Tal modelo, abrangendo Alemanha, França, Itália, Áustria, foi construído por meio de redistribuição de renda (via impostos), programas sociais e elevadas aposentadorias. Acontece que o colapso fiscal determinou o fim dessa política.
Nas décadas de 80 e 90, a desigualdade voltou a aumentar. Por causa do desemprego. Era a época do Reagnomics, do Estado mínimo de Margareth Thatcher. Até meados dos 70, a taxa média de desemprego na União Europeia era de 5%. Na década dos 80 e 90, elevou-se para mais de 10%.
De lá para cá, nem nos Estados Unidos a política redistributiva de Obama produziu efeitos compensatórios significativos. Não obteve êxito, por exemplo, na recuperação do cinturão de ferrugem de Detroit. Por isso, não evitou o sucesso eleitoral do discurso radical de Trump. E o medcare continua a depender da maioria republicana no Congresso americano.
No século XXI, era da Tecnologia da Informação e Comunicação – TIC, o formato da produção econômica mudou. O insumo é conhecimento, informação, pesquisa, inovação, criatividade. Esse formato provocou a mudança do perfil do profissional do setor. Exigindo mais qualificação. Decorrerá daí o estabelecimento de aliança entre o econômico e o social como a que foi fundada na indústria?
Há dois fatos reconhecidos no horizonte: primeiro, nos países anglo saxões os sindicatos são capazes de aceitar concessões. Negociam com flexibilidade contratual coletiva contribuindo para ajustar o mercado de trabalho. Reconhecendo que não há outro caminho na nova economia. Este é exemplo que precisa ser seguido no Brasil.
O segundo fato é a consolidação das atividades inseridas no âmbito da Tecnologia de Informação e Comunicação – TIC. Por meio do avanço de rede poderosa de empresas tecnológicas que passa por Microsoft, Google. E uma infinidade de agentes de produção de softwares.
Principalmente a partir do modelo produtivo em que a primeira unidade vendida custa caro. E as demais unidades funcionam como espécie de locação. É modelo baseado em inovação, pesquisa, atividades criativas, tecnologia. Incorpora produtividade e agrega valor.
Esse modelo de produção tecnológico é o futuro. Deve estimular também a identificação de modos de aliança entre o econômico e o social, o empresarial e o laboral. Descobrindo formas para instituir rede de proteção aos que atuam do lado do trabalho.
Nesse contexto, a questão do grau de desigualdade social poderá ser enfrentada por duas vias: a do Estado e a da iniciativa solidária do setor produtivo.
No caso do Estado, a redistribuição de renda por meio de impostos (trabalhando-se alíquotas e base tributária) e programas sociais orientados (educação e capacitação) com avaliação de sua eficácia.
No caso do setor produtivo, maior proteção social através de modalidades de parceria entre empresa e colaboradores. Estas podem variar desde a celebração de contratos flexíveis, não típicos, de meia jornada, até a participação de empresas de prestação de serviços em atividades específicas como informática.
A economia de mercado, na era da informação, precisa ser criativa também introduzindo o social no seu conteúdo: economia social de mercado.
Luiz Otávio Cavalcanti é membro do Movimento Ética e Democracia
Caro Luis Otávio
Seu artigo abre uma interessante discussão sobre desigualdade social e desenvolvimento tecnológico na era da globalização. Gostaria de aproveitar e fazer alguns comentários com a pretensão de jogar mais combustível no debate. Para isso serve a Revista Será?
1. Embora concorde que a adoção do Estado de bem estar social praticado pela social-democracia europeia favoreceu a redução da desigualdade de renda no pós-guerra, penso que a sua implantação foi viável apenas por conta do ritmo de crescimento da economia com aumento significativo da oferta do emprego (que você destaca) apesar da elevação da produtividade do trabalho, vale dizer, da inovação tecnológica. Foi esta elevação da produtividade do trabalho que viabilizou o aumento significativo dos salários. O movimento sindical se fortaleceu e avançou nas conquistas pela repartição dos excedentes da produtividade do trabalho (o que Marx chamava de “mais-valia relativa”). Pikety (no livro menos conhecido “A economia da desigualdade”) mostra que “entre 1870 a 1994, o poder de compra de um operário foi multiplicado por aproximadamente oito”.
2. Penso que o modelo social-democrata tem muito mais a ver com a distribuição de bens e serviços públicos de qualidade, com destaque para a educação, que propriamente com a forma de “distribuição de renda” a que você se refere. E acho que esta distribuição equitativa dos ativos sociais (serviços públicos) contribuiu decisivamente para a redução das desigualdades de renda. A desigualdade social não pode ser tratada apenas como desigualdade de renda, embora essa seja a forma mais simples de medir o fenômeno. Por isso, não acho que a desigualdade social atual nos países desenvolvidos deva ser enfrentada com a “redistribuição de renda por meio de impostos (trabalhando-se alíquotas e base tributária)” mas sim com programas de educação e capacitação, como você fala mas que preferia não chamar de programas sociais para não confundir com assistência social.
3. Sem querer defender a “Dama de Ferro”, acho que você foi injusto com Margareth Tachtcher quando associou o aumento do desemprego e das desigualdades sociais na Grã-bretanha à sua gestão. Na verdade, quando ela assumiu em 1979, a Grã-bretanha vivia uma crise econômica com desemprego e inflação alta, sob o efeito combinado da perda de competitividade e da segunda onda da crise do petróleo. As reformas implementadas por ela, principalmente a retirada de proteção das atividades de baixa produtividade, como a mineração, aprofundaram a recessão e o desemprego, ampliando a desigualdades. Mas, ao mesmo tempo, recuperaram a competitividade da economia. O que se pode/deve discutir é o tamanho do custo social e os seus resultados na economia e, de tabela, na renda e na sua distribuição social. Como a “Dama de Ferro” não fez tudo que quis, o resultado síntese da luta política pode ter sido positivo combinando a reforma do Estado (com influencia liberal) com a manutenção do essencial do Estado de bem estar social. Ou alguém duvida da qualidade de vida da Grã-bretanha.
Comentário muito longo, eu sei. Grande abraço, Sergio