Se quero me conhecer, tenho que explorar o Recife. Em cada pedaço de chão, no raio de sol que brilha do mar, no movimento das baronesas-de-cheia do Capibaribe. Margens da minha vida, contornos, meandros.
Espreito os vestígios do invasor holandês. Não encontro. Marcas na paisagem só as pinturas que percorro com os olhos para identificar os lugares por onde andei. Imagens distorcidas pela memória dos cortesãos retornados de Nassau, distantes e saudosos da exuberância tropical.
Aparecem as primeiras fotografias. O Recife é panorama fértil para o olho aflito do fotógrafo. Quer congelar o que vê. O rio, o casario, os homens estáticos diante do objeto estranho que explode em cinzas de captar a luz. Cartões postais que andam o mundo e retornam à origem pelas mãos herdeiras e insensíveis à caligrafia familiar que os leiloam e eu compro.
O Recife são fotografias na parede – e como doem, poeta. É um zeppelin parado no ar. Como é que pode? A chegada de um deles nos anos 30 em Nova Iorque foi motivo de desfile em carro aberto na Quinta Avenida. Aqui, ninguém dá bola. Paira sozinho e triste sobre uma cidade indiferente. Que coisa, esse cosmopolitismo esnobe do Recife! Mas tem todo o direito, ou não? Ele, zeppelin e suástica (como vistos por cima do Maltado da Marquês de Olinda), que deveriam ter pedido licença para flutuar nestas paragens indômitas.
Na Boa Vista das pensões e repúblicas estudantis dos anos 70, o Recife era o domínio dos ônibus elétricos. Andar nas ruas à noite, do cinema Coliseu até a Conde da Boa Vista, era pegar o trolleybus e jogar conversa fora sobre o último filme de Fellini. Delícia noturna. Não me lembro de ter tido medo de violência.
O Recife do feicibuque. Que maravilha a recuperação iconográfica de recantos insuspeitos desta cidade que a moçada está fazendo. Cada uma foto melhor que a outra. Cada qual, um templo de adoração dos curtidores às centenas, declarações de amor e orgulho explodindo em likes. Todos juntos numa reapropriação afetiva deste lugar que nutre utopias e esperanças, geração após geração.
É por essas e por outras que continuo dizendo: esta cidade é muito mais “amável” do que “habitável”. E ai daqueles que não se aperceberem dessa contradição, desse sincretismo que nos move desde tempos imemoriais.
Cláudio Marinho, paraibano-pernambucano do Recife/Olinda
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Cláudio Marinho
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Receio que o resgate de um Recife que foi tão vivo, ao ponto de construir sua paisagem singular, fique apenas nas imagens, Cláudio. As pessoas podiam, antes, percorrer as ruas com tranquilidade, andar na cidade à noite, sem se preocupar com segurança. Essa vivência ensejou o que hoje são os signos, as referências dos lugares onde a população fez sua história. Uma árvore, uma casa, um monumento que esteja em certo espaço da cidade é maior do que a representação de si mesmo, pois tem o valor simbólico e emocional de vivências passadas, nossas e das pessoas que nos antecederam. É preciso preservar esses espaços. Mas é preciso também deixar que as pessoas possam construir hoje o que serão os signos de amanhã. É preciso voltar a viver a cidade. Podemos começar pelo Centro do Recife?
Gostei muito da matéria e gostaria de saber se voce tem alguma foto do antigo cinema coliseu da estrada do arraial. agradeceria se me indicasse alguma fonte.