Sérgio C. Buarque

 

A política tributária é uma poderosa ferramenta de promoção econômica e, principalmente, de justiça social, tirando de quem tem mais para formar o fundo de investimentos públicos nas áreas sociais. Este princípio geral, contudo, tem limites, a começar pelo fato da estrutura tributária não controlar a alocação dos recursos que ajudou a formar: a legislação tributária define a estrutura por tipo de imposto e correspondente alíquota de acordo com o segmento da economia e da renda, a Receita Federal coleta e o tesouro disponibiliza para os gastos governamentais. Mas a sua utilização nas diferentes políticas públicas, é definida no orçamento dos governos e nada assegura a distribuição correta e justa de acordo com as necessidades estratégicas e sociais.

No que se refere ao imposto de renda, a justiça fiscal costuma utilizar uma escala progressiva de impostos, de modo que pague mais quem tem maior rendimento. No entanto, a dosagem das taxas crescentes pode gerar distorções graves no incentivo econômico e nos benefícios sociais. Num país como o Brasil, que arrecada 36% do PIB e não oferece os mais elementares serviços sociais (para quem paga e não paga imposto), especialmente educação e saúde, quem paga imposto de renda se sente, legitimamente, injustiçado; o governo não pratica justiça social na aplicação dos recursos recolhidos dos que geram renda. Qualquer cidadão, com uma renda anual acima de R$ 53.600,00 (cerca de R$ 4.500,00 por mês), relativamente modesta, entrega 27,5% de tudo que ganha para o governo sem que, no entanto, receba ou veja o conjunto da população recebendo educação de qualidade, saúde pública universal, e segurança pública.

Mesmo em países com inquestionável justiça social na utilização dos recursos públicos, como a França, com educação e saúde universal, gratuita e de qualidade, as dosagens na cobrança de impostos podem provocar, como contrapartida, uma clara injustiça fiscal. É o que nos diz, com inteligência e indignação, o ator francês Gerard Depardieu, que, como muitos outros franceses ricos, escolheu um “exílio tributário” na Bélgica para fugir da excessiva carga tributária sobre a sua renda; segundo divulgado na imprensa, 27% da população da pequena cidade belga de Estaimpuis é formada por estes exilados fiscais. O governo francês aprovou no Congresso uma taxa de 75% de Imposto de Renda da pessoa física para rendimentos anuais acima de R$ 2,8 milhões (cerca de R$ 233 mil por mês). Renda muito alta? É! Muito alta, mesmo para os padrões europeus, mas a elevada taxa deixa apenas um quarto do valor para o cidadão que produziu, criou, inovou, e três quartos vão para os cofres públicos. Mesmo que os recursos sejam bem utilizados, ao contrário do que ocorre no Brasil, o desabafo de Depardieu denuncia uma injustiça fiscal para fazer justiça social.

O grande ator francês se disse injustiçado com a taxa de imposto e atravessou a fronteira para uma espécie de exílio fiscal, passando a contribuir, com valores menores, para financiar a justiça social do país vizinho. Na sua declaração pública, Gerard Depardieu afirmou, corretamente, que o Estado francês está penalizando o sucesso, a força criativa e produtiva dos seus cidadãos que, no seu exercício profissional, gera outras rendas e paga outros impostos, principalmente os impostos indiretos. O “efeito Depardieu” (podemos chamar assim) é conhecido na teoria econômica, mas não parece interessar aos voluntaristas do governo francês: a partir de certo nível, o imposto pode exercer o efeito inverso na arrecadação, seja pelo desestímulo à produção, seja pela fuga de cérebros (como a do ator francês), seja pela sonegação. Funciona como uma forma de punição do sucesso e de desestímulo ao talento, à criação e ao esforço empreendedor, como indica o próprio Depardieu no seu argumento para a saída do território francês.

Nos países europeus, com igualdade de oportunidade desde a infância, com escolas públicas de qualidade, a generosidade da assistência social, muitas vezes excessiva, pode premiar a passividade e a dependência dos cidadãos; na mesma escala em que os elevados impostos de renda punem os mais criativos e dinâmicos, como Depardieu, teoricamente para praticar a justiça social. Na França estaria ocorrendo uma injustiça fiscal que, em todo caso, ajuda na promoção da justiça social. E no Brasil? A Receita Federal taxa fortemente o contribuinte com renda apenas moderada, com alíquota igual à dos cidadãos mais ricos, gerando uma elevada arrecadação tributária. Para que? Onde estão os serviços públicos para os brasileiros, contribuintes ou não? A França tem justiça social mesmo convivendo com injustiça fiscal. Mas o Brasil consegue combinar o pior dos mundos: injustiça fiscal e injustiça social.

 Sérgio C. Buarque

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