A Sucursal da Editora Bloch no Recife havia sugerido, para a Revista Manchete, produzir uma reportagem contando os últimos dias do transporte ferroviário no Estado, condenado à morte pelo regime militar – e que estava na memória de nosso povo desde o início do Século 20, quando as primeiras locomotivas foram incorporadas à nossa paisagem e ao nosso dia a dia. Foi uma das últimas matérias que escrevi, no Recife, antes que esse mesmo regime militar fosse colocado sob a suspeita de ter seviciado e assassinado o padre Henrique, um dos religiosos mais chegados a dom Hélder Câmara. Essa cobertura também me coube, nas revistas Manchete e na Fatos & Fotos, (a Bloch editava cerca de 15 revistas diferentes) e foi o motivo de minha transferência às pressas para o aconchego da matriz, no Rio de Janeiro, por conta de ameaças anônimas que comecei a receber. No Rio, estavam outros migrados, iguais a mim, mas isso já é outra história. Vamos, pois, a nossa bela aventura viajando no último trem do Sertão.
Foi essa a primeira vez que fiz dupla com o fotógrafo Nelson Santos, deslocado do Rio para uma temporada na Sucursal do Recife, onde também trabalhavam Alcir Lacerda e Raimundo Costa, igualmente dois grandes profissionais da fotografia. Mais tarde, já na sede da empresa, Nelson Santos viria a ser meu parceiro em inúmeras outras viagens – um repórter-fotográfico competente, talentoso, responsável e acima de tudo um grande companheiro, para os bons e maus momentos de qualquer viagem: na mesma bolsa onde ele alojava as inúmeras lentes de sua inseparável Nikon, iam também linha de costurar, botões e agulha, para qualquer imprevisto com as vestes do dia; cravo-do-reino, para mascar e afastar o cheiro da cerveja antes de qualquer entrevista; elixir paregórico, para qualquer desarranjo intestinal; tesourinha de unha, colírio, comprimidos para dor de cabeça, guardanapos de papel… Nelson costumava repetir um sábio conselho de Stanislaw Ponte Preta: “malandro prevenido dorme de botinas”…
A velha locomotiva da saudosa RFFESA – Rede Ferroviária Federal S/A partia da Estação Central rigorosamente às seis horas da manhã, com destino à cidade de Salgueiro, no Sertão do Araripe, num percurso superior a 500 quilômetros, onde chegava com a noite adiantada. Bem em frente da Estação Central ficava à Casa de Detenção do Recife, de tristes e tenebrosas histórias, presídio que abrigou cangaceiros e comunistas, culpados e inocentes, vítimas ofendidas e humilhadas da Revolução de 30 – algumas delas decapitadas sem culpa e sem perdão. Anos depois, coube ao então governador Eraldo Gueiros, decretar o fim da Casa de Detenção, transformando o local num centro de cultura popular. Enquanto arrastávamos nossas malas e nos preparávamos para a partida, dava para ver, nas grades dos alojamentos superiores do presídio, o rosto triste de alguns condenados que olhavam o trem partir todas as manhãs, numa rotina, para eles, invejada e inacessível, tão distante quanto o cultivado sonho da liberdade.
O trem partiu. Vagaroso e barulhento, cortando inicialmente os bairros periféricos do Recife, feitos de casas humildes e homens tristes, lá se ia, cada vez mais aprofundado na geografia do Estado, primeiro a Zona da Mata, depois o Agreste, depois o Sertão… A cada estação que parava, subiam e desciam pessoas, vendedores ambulantes ofereciam seus produtos aos passageiros, funcionários da RFFESA despachavam os “malotes” dos Correios, entregavam os jornais da capital, uma pequena “festa” acontecia naquele curto espaço de tempo e se repetia a cada dia. Nós registrávamos aquela dolorosa comédia humana, onde muitas vezes a alegria e a dor viajavam juntos – uns que iam outros que vinham, cada qual conduzindo seu destino.
Era preciso mostrar, também, qual o sentimento de perda daquelas comunidades que habitavam pequenas cidades, povoados, lugarejos, quando o trem fosse apenas uma lembrança na paisagem castigada do Agreste e Sertão. Descemos e pernoitamos em Sertânia, onde o trem chegou já no finzinho da tarde. Nelson Santos fez mais uma série de fotos, com a locomotiva deixando a Estação, a pequena multidão que ali se aglomerava sendo aos poucos desfeita, a cidade voltando a paz modorrenta de todos os dias.
Poucos se davam conta do quanto a vida daquelas localidades estava ligada ao transporte ferroviário que ligava todas elas ao Recife – numa época de rodovias poucas e precárias, quase nenhuma delas coberta de asfalto. Os que sabiam dos prejuízos que teriam pela frente, com o fim do transporte ferroviário, se abstinham de fazer críticas: era uma decisão da ditadura militar, se colocar contra isso poderia criar problemas.
No dia seguinte, retomamos a caminhada. Subimos no trem quase à mesma hora que havíamos desembarcado no dia anterior – com a triste experiência de ter visitado a Zona do Baixo Meretrício, onde bebemos uma cerveja quente e nos afastamos constrangidos pela miséria do local.
De Sertânia a Salgueiro, a velha locomotiva parecia ainda mais cansada e mais lenta – vencendo o chão seco do Sertão, serpenteando pelo meio da caatinga, até encostar, finalmente, na derradeira estação do percurso. Tínhamos um farto e curioso material para montar a nossa reportagem, Nelson havia produzido mais de 300 fotos, eu fizera inúmeras anotações e conversara com as mais diferentes pessoas que foram nossas companheiras de viagens – a tarefa fora razoavelmente cumprida.
No dia seguinte, pela manhã, fechamos a viagem com chave de ouro: eu sabia que em Salgueiro residia Veremundo Soares, um dos “coronéis” mais importantes da velha política pernambucana, ao lado de “Chico” Heráclito, “Chico” Romão e “Zé” Abílio, senhores absolutos e incontestáveis em suas regiões.
Aos 93 anos, viúvo, enfartado e tabagista, todas as manhãs o “coronel” Veremundo montava a cavalo, deixava a residência e ia até uma de suas fazendas, onde estava sepultada a sua esposa. Lá, ele ajoelhava, rezava e colocava flores ao pé túmulo. Ele nos recebeu para uma entrevista. Entre as curiosidades que mostrou, estava uma carta de Virgolino Ferreira, o Lampião, ameaçando invadir a cidade de Salgueiro. O “coronel” Veremundo juntou seu pessoal, providenciou armas e munições e mandou dizer a Lampião que talvez fosse melhor ele não fazer aquilo… Salgueiro “não se rendia sem briga”…Conta-se que o temido cangaceiro juntou seu bando e foi bater noutra freguesia.
Eu e Nelson Santos também entendemos que nossa missão estava terminada. Era hora de bater noutra freguesia… Agradecemos ao coronel Veremundo, arrumamos as malas e na manhã seguinte já estávamos na Estação Ferroviária. Para voltar ao Recife no último trem do Sertão.
Mais uma crônica deliciosa, Ivanildo. Vejo como se fosse hoje os presos da casa de detenção colados às grades, contemplando a uma distância intransponível o movimento da rua. Certa feita, numa tarde de domingo, um deles tentou se evadir e foi baleado quando já tinha atravessado para o abrigo que ficava entre a cadeia e a estação. Vendo o homem agonizar, meu pai colocou-o no porta malas de uma rural verde e branca e levou-o para o hospital, onde ele morreu. Papai vestia um safári branco que voltou ensanguentado. Nós ficamos no abrigo esperando que ele voltasse. Ali mesmo alguém apareceu com uma mangueira para lavar o carro.
Quanto aos trens, diz minha mãe que quando chegava de Garanhuns, a primeira sensação que lhe assaltava era o cheiro das mangabas do Recife que impregnava toda a cidade. Já pensou que maravilha? Ouvi muitas histórias do coronel Veremundo pela boca de seus netos, alguns deles diretamente ligados à família Coelho, de Petrolina. Tudo isso veio de rojão à mera leitura de seu texto. Louvo também sua memória para nomes próprios. Nessa série com que você nos brinda, os nomes surgem aos borbotões, mesmo aqueles de companheiros seus que não eram conhecidos do grande púbico. Adoraria ter passeado de trem pelo estado de Pernambuco. Acho que o único trecho que fiz foi até a Estância.
Abraço,
Fernando
Curti lá em cima, no local adequado. História do Brasil, belo relato de Ivanildo Sampaio, que fica perto do cotidiano e faz justiça aos companheiros. Saudades do trem: ainda na infância e juventude íamos de férias todo ano de trem, de Santos a Araraquara. Algum erro de política em dado momento da história nos legou o predomínio tão exagerado da estrada e do caminhão. Terá sido responsabilidade do Presidente Juscelino Kubitschek, quando trouxe a indústria automobilística para o Brasil?
Aproveitando a deixa da reminiscência da peça de Ivanildo e o comentário oportuno de Helga, admito que a decisão de Juscelino contribuiu para a aceitação do crime cometido contra o desenvolvimento de uma nação continental como a nossa, pela ditadura (leia-se o Presidente Castelo Branco e o ministro Juarez Távora) ao destruir o nosso sistema ferroviário de transportes. Até hoje, CINQUENTA ANOS DEPOIS, nenhum país respeitável no mundo, desprezou esse modelo de transportes, sobretudo em grandes distâncias e volumes. Ninguém respeita ou releva a importância da construção da ferrovia Transnordestina que está abandonada a muitos anos e que mudaria a economia do Nordeste. Ou não ?
Caro Ivanildo, também tive minha experiência ferroviária, a única viagem de longo curso que fiz nesse tipo de transporte, no Brasil. Foi em 1959, para participar dos Jogos Universitários Regionais, em Fortaleza. Por falta de recursos, a delegação paraibana viajou de trem, saindo de João Pessoa para Souza, no interior do Estado, e prosseguindo, após dormida, através do Ceará, de sul a norte. Minhas lembranças mais fortes dessa viagem foram a poeira terrível, provocada, surpreendentemente, pelo deslocamento dos vagões sobre terrenos barrentos e secos, e a conversa nostálgica dos velhos ferroviários, de uniforme cáqui, falando dos belos tempos , de passageiros mais qualificados. Um deles até sabia algumas palavras em inglês. A paisagem, em quase todo o percurso, era a previsível: áspera, seca, de pedras e caatinga.
Suas memórias jornalísticas ainda podem render muito, e o interesse que despertam é enorme. Continue, amigo!
Helga Hoffmann, essa razão do sucateamento ferroviário em prol da supremacia da indústria automobilística, foi a que pegou, era mais aderente. Mas talvez não tenha sido a verdadeira. Há outra versão, que aponta a causa real, principalmente na área de São Paulo, estava no perigo sindical.
É que o sindicato dos ferroviários era fortíssimo, coeso, completamente controlado pelo partidão.
O que representava extrema ameaça ao regime militar, devido à enorme capacidade de transporte de pessoas, cargas e, principalmente, gêneros alimentícios, através dos trilhos.
Esse temor cresceu e se consolidou em núcleos de militares, que viam o meio ferroviário com apreensão sempre maior.
Apesar do fator de que as ferrovias pertenciam à livre empresa, eram sólidas, bem estruturadas técnica e economicamente, com décadas e décadas de bons serviços, onde até o melhor do requinte inglês se destacava, como nos vagões da Companhia Paulista.
Não obstante, os militares sabiam que uma greve geral no setor causaria o desabastecimento, com graves consequências.
Esse temor levou à estatização de todo o setor, para o paulatino sucateamento, conforme as alternativas rodoviárias avançavam.
Que bom que a “Será?” estimula comentários. Aprendi com os comentários de Ivan Rodrigues e Wagner Nogueira, nunca tinha pensado o assunto para além do estímulo de Juscelino à indústria automobilística. Faz todo sentido incluir o papel dos sindicatos de ferroviários e a preocupação dos militares com a logística. E assim as condições dos trens e dos ferroviários, a nova indústria que se instalava, mais o governo militar reforçaram, todos em conjunto, a opção pela estrada em prejuízo da ferrovia. Além de que, no relato de Clemente Rosas, a ferrovia em algumas regiões não era aquela maravilha toda. Naquele tempo do General Castelo Branco ninguém iria pensar em uma lei de greve especial para empregados em serviços públicos, como existe em alguns países europeus, que exigem que se mantenha uma percentagem mínima em operação. Fora que em tese também pode haver greve de caminhoneiros. Naquele tempo ninguém pensou tampouco no imenso volume do roubo de carga.
Um grave erro. O abandono da estrada de ferro em Pernambuco se dá nos anos 50, quando a ferrovia passa a ser controlada pela RFN (Rede Ferroviária do Nordeste). O golpe militar ocorre anos depois. Antes de sair falando besteira, estude história. Após isso, sim. O abandono da linha e o sucateamento são inegáveis. Tanto que a estrada é desativada nos anos 80.