Muitas vezes deploramos a impossibilidade de reviver sensações de encantamento, e muito menos de não mais poder reatar com o frescor das emoções então avivadas, quando vielas ainda eram fadadas a virar avenidas. Caminhando pelas alamedas nuas do Jardim do Luxemburgo, em Paris, vendo de soslaio a meninada que troca beijos à porta do liceu no intervalo das aulas, duas sensações me assaltam com intensidade. A primeira é uma mescla de alegria e desalento. Já estive na pele daqueles jovens e vivi as mesmas sensações, na paisagem inalterada, sob o olhar de Maria de Médicis. A segunda, esta menos pungente, diz respeito a esses parisienses, cujas idiossincrasias me eduquei para apreciar ao longo de quase meio-século de visitas frequentes à cidade. Nem sempre previsíveis, mas não raro sujeitos aos modismos que irradiam para o mundo, aprendi cedo a amá-los e entendê-los.
Ora, se já escrevi aqui e acolá sobre eles em tantas publicações, talvez seja hora de lhes lavrar um tributo mais definitivo. Dada a marcha inexorável dos anos, se impõe devolver à Cidade-luz parte do que ela vem me legando, desde que desembarquei certa tarde no aeroporto de Orly, aos 15 anos. Assim sendo, ocorreu-me desenhar uma aquarela tão leve quanto possível sobre a gente dessa cidade, a rainha do mundo, como consagra um dos tantos hinos que lhe foram dedicados. Abstraindo-me dessa feita da angulação viciante da primeira pessoa, aqui vai um apanhado de quem viveu Paris em vários distritos, em todas as estações, em todos os meses, ano após ano. Para mim, e para os mais avisados, o grande atrativo da capital é o parisiense. Luzes e néons são apenas acessórios para iluminar a ribalta onde eles deambulam com ares de poucos amigos, e quase sempre de olho no relógio.
À mesa
Se há uma indústria que prospera no mundo, que ninguém se iluda, esta é a do auto-engano. E o fenômeno fica evidente à mesa parisiense. Veja-se o caso do caramelo à base de manteiga salgada. Embora dulcíssimo, em calda ou sorvete, a aposição de um ingrediente à base de sal, alivia consciências. Virou moda. O mesmo vale para a complementação dos repastos. Se já não se oferece a opção clássica de queijo ou sobremesa, como era de praxe nos anos 1980, é certo que, sendo o café incontornável, o cliente fique tentado à opção do chamado “café gourmand”. Assim, junto com o expresso, e contra a prestação de poucos euros, o garçom trará 3 pequenas sobremesas miniaturizadas, geralmente de “crème brûlee”, uma bolinha de sorvete e um “éclair” de chocolate. O truque é claro. Você não pediu sobremesa. Apenas café e, por que não, aqueles pequenos adereços. Ora, isso é bem parisiense.
Numa cidade que irradia tendências para o mundo, é natural que ela sucumba a seus próprios fetiches. Assim sendo, olhe as cestinhas de compras na feira livre e deixe-se surpreender com a predileção generalizada por tomate-cereja. Pequeninos e vermelhinhos, mais parece que o tomate clássico está relegado à elaboração de saladas caprese, servida com muçarela. A febre clama agora pelo irmão menor. Outro capricho faz com que a água mineral mais aclamada seja italiana. A San Pé, forma íntima de denominar a San Pellegrino, caiu nas graças no país da Perrier. Mas, convenhamos, onde está a surpresa se a Cidade-luz está cada vez mais rendida a toda sorte de restaurante japonês, de propriedade de chineses, e se comer sushi virou febre e sinal de status? E o que diria o puro De Gaulle dessa guinada em favor do azeite e do vinagre balsâmico em detrimento da manteiga e do creme de leite?
Convenhamos, apesar dessas concessões ao que vem de fora, no mais das vezes em nome da silhueta e, por que não, em benefício da saúde, algumas instituições permanecem solidamente ancoradas na tradição local. Tomar um sorvete na Berthillon, na ilha de Saint Louis, permanece um dos programas mais caros aos locais. Apesar de ter que abrir caminho entre centenas de cotovelos orientais, o parisiense se munirá de paciência porque não se trata de uma sorveteria como outra qualquer. Da mesma forma, a degustação de frutos do mar iodados nos terraços dos cafés continua a ser de regra em todos os meses do ano de que conste a letra “r” – o que alija o quadrimestre que vai de maio a agosto – e ir às compras nos mercados públicos e feiras, é mais do que uma tradição de velhos, é uma festa para os sentidos. De ouvir os pregões, o amante da cidade chora de saudades.
La mode
As pessoas em Paris usam preto. Primeiro porque pode-se lavar menos a roupa. E depois, o que não é nada secundário, porque preto emagrece, afina a silhueta. Por último, preto, azul-marinho e cinza, são cores sóbrias, que não carnavalizam a indumentária, vulgarizando-a. É claro que adereços únicos de cor, tanto para homens como para mulheres, são chamados a fazer um contraponto. Um foulard de seda ou um cachecol são perdoados, quando não estimulados. Um detalhe, porém, segundo o cronista Olivier Magny, jamais será perdoado: meias brancas. Usar meias brancas é quase tão brega quanto usar tênis brancos com jeans, como fazem os turistas sul-americanos, ou como colocar o pulôver dentro da calça. Jeans, aliás, podem espelhar um estilo de vida. Um Diesel de 250 euros confere prestígio, além de sinalizar que o dono tem menos de 40 anos. Quanto mais velho, menos jeans.
No caso dos homens, contudo, nada vai se comparar em sex-appeal a uma barba de três dias, aquilo que em outros tempos era comumente qualificado de “cara suja”. Aqueles pelos rebeldes indicam um certo “jemenfoutisme“, um neologismo que vem da expressão “je m´en fous”, ou seja, “estou pouco me lixando”. A barba rala demonstra que o sujeito está além das convenções, que nenhum patrão, ambiente corporativo ou cônjuge pode demovê-lo de ser selvagem e rebelde. Esse ar indômito reforça a identidade dos filhos de uma cidade que já nasceram com tudo, e as mulheres haverão de discernir a virilidade latente do cidadão, pronta para explodir. Que não se confunda a barba descuidada com o visual da racaille, a chamada escumalha do subúrbio, geralmente de magrebinos e africanos, que misturam hip-hop, Islã e futebol. A barba destes decorre de desleixo não premeditado, quando não de traço tribal.
É claro que a língua também está sujeita a modismos em Paris, muito embora se mantenha razoavelmente perene. Eles adoram, por exemplo, dizer “sympa” para tudo de que gostam. Forma abreviada de “sympathique”, a depender do tom, pode ser um elogio maior ou menor. Se dito sem muita ênfase, pode significar que se esperava mais. “Putain” – puta – já não guarda qualquer ligação com o velho ofício, antes celebrado às portas dos cabarés de Pigalle. “Putain” é uma interjeição, para o bem ou para o mal, e pode ser dito em toda circunstância, sob o império de qualquer audiência. Vai da inflexão. A menos, bem entendido, que pretenda se referir a prostitutas. Nesse caso, ficaria deslocado e grosseiro. Já dizer “hyper” e “super” antes dos adjetivos, é de regra entre os mais jovens. “Hyper sympa”, por exemplo, é quase uma Legião do Honra. Abusam, de mais, da palavra “petit”, por achar que menos é mais, e que “grand” é grosseiro. “Une petite visite sympa”, por exemplo.
Codes secrets
Estrangeiros normalmente não atentam para miríade de detalhes, tanto estão entretidos em descer às catacumbas e tirar fotos que julgam de alto impacto. Mas sentado à uma mesinha do Café Flore, em Saint Germain, talvez sobre um pouco de leveza para apreciar o desfile de corpos bem cuidados, próprios de quem abomina o excesso de peso, e tenta manter la forme. Sendo o domingo o dia municipal da depressão, salvo para turistas e expatriados, os parisienses acorrem em massa aos cinemas e fazem longas e ordeiras filas nas calçadas. Aliás, para os desavisados, é bom saber que depõe mal torcer pelo PSG, por exemplo, mesmo que o time conte hoje com Neymar no elenco. Uma coisa é dar uma olhada na equipe nacional durante a Copa. Outra é se esgoelar por uma bandeira que só congrega suburbanos e imigrantes. O parisiense da gema gosta de rúgbi, esporte insuspeito de cair nas graças da racaille. Roland Garros também tem seu charme primaveril.
Parisienses não diferem muito do geral dos franceses quando se trata de rotular os que chegam de fora. Quem vem do sul e tem aquele sotaque arrastado, típico de Marselha, tem direito à simpatia gratuita: “É sulista, é gente boa”. Nesse contexto, tendem a caricaturar os belgas como vítimas de um país dividido que, mais cedo ou mais tarde, uma vez livre dos holandeses, se incorporarão à França. Acham-nos engraçados e beberrões. E os americanos? Não há nada realmente contra eles, mas nove entre dez parisienses dirão que eles só pensam, fundamentalmente, em quatro coisas: dinheiro, guerra, religião e esporte. Acreditam piamente que os americanos são adolescentes que passam diretamente para a senilidade, sem captar as sutilezas da idade adulta. Mas amam Nova York e é chique ter um amigo lá. Consideram os chineses todos iguais. De resto, são muito solidários entre si, têm seu próprio sistema de crédito comunitário, são ligados a máfias e trabalham duro.
Poucos lugares, contudo, parecem gozar de um prestígio tão sustentado quanto a América do Sul. Para o parisiense, em qualquer lugar abaixo do rio Grande, quer seja na Patagônia ou no altiplano andino, em Suriname ou no Peru, a evocação a uma expedição ao continente confere ao narrador uma aura de grande charme, ingrediente vital nas relações sociais. Qualquer semana curtida em Salvador, outorga ao viajante um halo de benfeitor da humanidade, de destemido, de hedonista e pouco convencional. É claro que ele sempre ressalvará que é uma baita região perigosa e que esteve bem próximo de não voltar na cabine do avião. Mas que, no final, tudo correu bem. Viagens ao leste ou ao norte da Europa, não agregam muito à imagem, mas escapadas de fim de semana prolongados com a Easyjet para Budapeste ou Lisboa, valem a pena. “Os preços são um presente”, comentam.
Question de personalité
Não é fácil ser parisiense. Imagine-se o que é despertar, abrir a janela, e dali mesmo ver um séquito de turistas a fotografar o gatinho do vizinho que, invariavelmente, dá saltos contra a vidraça para pegar uma mosca aprisionada. Isso porque tudo na cidade parece se revestir de um interesse e de um encantamento que, goste-se ou não, reduz os turistas a um bando de lobotomizados aos olhos dos locais. É claro que ninguém mais duvida da importância daquele exército de gente que anda devagar e fala aos berros, na manutenção do nível de vida francês. Mas daí a estabelecer amizade com um turista, por exemplo, vai uma distância estratosférica. E estariam expulsos das confrarias mais rarefeitas da cidade os que cedessem, por quaisquer razões, a esse impulso abobalhado. É missão quase impossível convencer um parisiense de que um turista que a cada três palavras que diz, suspira um amazing, tem um cérebro para chamar de seu.
Tampouco é fácil aceitar que seu estilo de vida esteja sob permanente escrutínio de quem não tem elementos concretos para fazer um julgamento, salvo por meio de comparações pueris com suas culturas de origem, o que será sempre um critério insuficiente. O grave na cidade, são as tensões que a tornam alvo fácil e tentador para maquinações as mais funestas. Convém notar, contudo, que o parisiense se posicionará sempre a respeito de um tema, por polêmico que seja, em contraposição ao que diz o interlocutor. Se este fala mal dos russos, ele os defenderá. Se defender Putin, ele reduzirá o Czar ao último dos cleptocratas. Fale-se mal dos alemães, e eles dirão que sem os vizinhos, não haveria Europa. Fale-se bem, e provarão com verbosas enumerações que construíram um bloco econômico em torno de seus interesses. Arrogante sob o ponto de vista intelectual, o parisiense o contemplará com piedade, deixando no ar a impressão que você é um inocente útil.
Seja como for, e aqui destaco uma observação do autor já citado, Paris consagra uma unanimidade: o belga Jacques Brel, intérprete de rara verve. Se as fotos de Robert Doisneau – especialmente seu célebre beijo à porta do Hôtel de Ville – rodam mundo, o poeta de “Les prénoms de Paris”, que morreu ainda jovem, galvaniza audiências de todas as idades, talvez por ser uma nau de angústia num porto de beleza e beatitudes. Por ter vivido trágica e intensamente, sem fazer concessões fáceis nem a seu meio nem a seu tempo. Como testemunhos de um tempo que não volta mais, é sempre reconfortante ir ao cemitério do Montparnasse e, logo à entrada, visitar os túmulos vizinhos de Sartre e Beauvoir. Para muitos visitantes, e o paradigma talvez se aplique a este escriba, enquanto eles estiverem ali, estação após estação, unidos pelo mutismo e por uma cumplicidade que só poderia ter sido forjada naquelas ruas, Paris será eterna.
E os parisienses estarão perdoados. Voilà!
Já li muito escrito seu e esse foi mais um com qualidade alta, congratulações.