Clemente Rosas

O velho negro olha o passado.

                                     The child is father of the man – William Wordsworth

É bem conhecida a afirmação do poeta inglês, de que a criança é pai do adulto.  Poucos anos de sua infância passou Manuel Bandeira no Recife, e esse tempo impregnou, assumidamente, toda a sua obra.  Proust e Pierre Loti (“Le Roman d’un Enfant”) dão outros testemunhos dessa verdade.  E isso me encoraja a remexer no meu passado para dele extrair, quem sabe, alguma coisa de interesse mais abrangente, que leve à reflexão meus poucos leitores.

Tive o privilégio de uma infância de classe média em cidade pequena: sem televisão, sem shoppings, sem brinquedos eletrônicos, em casa com quintal e jardim, com família numerosa e temporadas anuais na praia e no campo, onde podia pescar e cavalgar.  As figuras humanas que encontrei e, de alguma forma, me causaram impressões – de pena, simpatia ou horror – vão aqui retratadas, numa galeria de heróis e bufões que terão, pelo menos, algo de pitoresco a ser apreciado.

Caseiros

O mais antigo caseiro, herdado do meu avô, a tomar conta do sítio do meu tio, na Praia Formosa, foi seu Cardoso.  Conheci-o já velho e mouco, com sua mulher, dona Adelina, que logo se consumiria de velhice e câncer.  Quando jovem, além de pescador, teve o honroso posto de inspetor de quarteirão em Cabedelo.  Em idade avançada, limitava-se a pescar bagres, nas tardes de maré cheia, lançando a linha da beira-mar.  Amarrava a linha no dedão do pé, deitava-se na areia e adormecia, só despertando com o puxão do peixe.

Eram notórias e cômicas a sua ingenuidade e a profunda surdez.  As minhocas do mar são excelentes iscas, pois “vestem” os pequenos anzóis com perfeição.  Elas vivem na terra molhada, em casulos feitos de fragmentos de mariscos e sargaços, que se entremostram em “bancos”, na baixa-mar.  Há uma técnica especial para capturá-las, sem que abandonem os casulos e fujam.  Seu Cardoso ainda era bom nisso.  E assim reportou uma de suas empreitadas:

Quando cheguei na praia, a maré ainda tava grossa.  Me deitei na areia e dormi.  Quando acordei, a minhoca tava todinha de fora…

E quando, para lhe vencer a surdez, meu tio gritava-lhe ao ouvido:

– E como vai sinhá Adelina?

Ouvindo pouco, o preto velho pensava tratar-se de alguma “criação de penas”, e respondia:

– Tá gordinha, sim senhor!  Tá boazinha de comer!

Seu Cardoso teve um enterro com toque de solenidade.  Trajava um “smoking”, velho traje de rigor que meu tio aproveitou para descartar.

Seu Quié foi o segundo caseiro, também negro, e forte como um touro. Nunca soube o seu verdadeiro nome.  Em bilhetes, minha mãe lhe germanizava o apelativo – sr. Kiez – o que não deixava de ser pitoresco.  Morreu com idade avançada, deixando prole numerosa.  Ainda joguei voleibol com um dos seus netos, um rapaz esguio e educado, que os companheiros apelidaram maldosamente, de Cheiroso.

E seu Biu foi o último, antes do retalhamento inevitável do sítio.  Estivador aposentado, baixo e compacto, de pouca fala e muita ação, era um tipo singular.  Tal era o seu negrume que, em noites de lua nova, de camisa e boné brancos, postado além da balaustrada do nosso terraço, não lhe distinguíamos o rosto, confundido com a treva do fundo do palco.

E foi em uma noite dessas que, ao voltar da casa do seu patrão, após ver uma novela de TV, o coração o traiu, no caminho de sua casa.  Foi encontrado morto, na manhã seguinte, encostado a um dos coqueiros de que cuidava.

Pescadores

Uma febre misteriosa roubou-lhe todos os pelos do corpo, deixando-o completamente glabro: nem sobrancelhas, nem pestanas, nada.  E assim ele se apresentava, com seu chapéu de palha, descobrindo o crâneo calvo:

– Me chamo Pedro.  Pedro Pelado.

Com a imprevisibilidade da pesca nos meses de vento e chuva, e a imprevidência típica dos jangadeiros, ele recorria sempre à caridade do meu tio, assim como outros: Pititinga, Miguel Primeiro, João Flor…  E meu tio, generoso mas colérico, se indignava com a irresponsabilidade deles. A Pititinga, já em seu declínio, nunca perdoou pela vigarice.  (É difícil manter padrões éticos na miséria).  Comprando, para ajudá-lo, os peixinhos que ainda conseguia trazer, numa jangadinha de “varejar”, aceitou também um peixe maior, com a seguinte explicação do pescador:

– Curimã pulou em cima da jangada, me agarrei com ela!

E completando, com sua risada solta:

– Quando Deus tarda, é porque tá em caminho!

Era mentira.  Quando foram tratar o peixe, viu-se que estava estragado.  Devia ter vindo morto, flutuando, caído de alguma outra embarcação: um peixe “boiado”, como se dizia.  De resto, a história era inverossímil.  Pode até acontecer de um peixe saltar sobre uma jangada: um “avoador”, um cardume de agulhas fugindo a uma família de botos, mas nunca uma curimã, que é uma espécie de tainha gigante.

Pedro Pelado teve um final ao mesmo tempo trágico e misterioso.  Já velho e quase cego, foi aceito, por caridade, como “bico de proa” de uma jangada.  Mas um dia a jangada não voltou ao cair da noite. O som do búzio não se ouviu, chamando os praieiros para o mutirão de empurrar o barco para terra. Quase como na canção de Caymmi, a jangada, encontrada dias após em praia distante, voltou sem mestre nem proeiro, tendo apenas sobre ela o corpo inerte de Pedro Pelado.  Nunca se soube o destino dos outros tripulantes.

De João Flor, recordo o porte altivo, de chefe de tribo africana, como observou um visitante europeu, hóspede de minha família. Tão espigado era ele que, ao sofrer um acidente com um fruto caído do coqueiro, foi atingido… no peito!  O coco apenas lhe triscou o bico do chapéu de jangadeiro.  O mesmo chapéu que ele não tirava nunca, nem mesmo quando precisava buscar a jangada de tábuas fundeada longe da praia: nadava em pé…

Eu e meus irmãos fomos companheiros de um filho dele, Avelino, passando bons momentos nos galhos dos pés de fícus que sombreavam o areal em frente às nossas casas.  Mesmo criança, fumava, e a explicação para isso era bizarra: seu pai mesmo o ensinara, para que largasse o vício de comer barro…

Fechando o bloco, posso apresentar Manuel Pirambu, o “irmão”, cuja crença religiosa o induzia a tratar a todos como tal. Foi ele quem ensinou ao “irmão” Mateus (meu irmão mais novo) alguns “pontos” de pesca no “mar de fora”, marcados por nós pelo GPS e explorados depois com a jangada a motor do atencioso aluno.

O irmão Manuel foi o último dos jangadeiros de Formosa.  Na velhice, sua jangadinha era tão pequena que, apenas erguendo o corpo do “banco de governo”, ele podia alcançar e movimentar a bolina, que fica logo atrás do banco de vela.  Não tinha proeiro, nem poderia: a embarcação não suportava mais que o peso dele.  E, mesmo assim, trazia peixes de porte razoável, como “galos do alto”, pescados com linha de bibuia.

Com dores crescentes na coluna, muito exigida pelos balanços da embarcação, e pelo esforço de lançar e recolher a fateixa, Manuel Pirambu, um dia, não voltou mais ao mar. Mas ia, frequentemente, cumprir o rito de molhar de água salgada a jangadinha, para que as suas tábuas não ressecassem e formassem frestas.  É possível que chorasse de saudade, ao cumprir uma tarefa já sem sentido.  Não sei.