Já faz mais de uma década que Gilberto Freyre, falecido em 1987, saiu de um limbo de silêncio em que certa inteligência brasileira ousou colocá-lo. Reducionismos daqueles que, emitidos por messiânicos ou analfabetos do próprio Freyre, traçaram visões e fronteiras simplistas, muitas nada mais sendo do que círculos de giz de prender peru. Mas Freyre, é óbvio, nada tem de um personagem plano, pelo contrário: tudo tem de um personagem saído da pena de Proust: multifacetado, complexo e contraditório. Pessoa pública, foi caleidoscópico: político, publicista, sociólogo, historiador, jornalista, criador de mitos e instituições e sobretudo escritor. Quer se concorde ou não com suas ideias, ações e opiniões, é impossível alhear-se às suas propostas e à sua atuação de intelectual e homem público. Como sentenciou Darcy Ribeiro, ele funda a nação no plano cultural, representando-a, assim como um Cervantes a Espanha, um Camões a Portugal, um Tolstói a Rússia. Seu genial legado é uma espécie de massapê vital a ser explorado pelos pósteros. O jequitibá que nasceu em nosso quintal, como disse José Guilherme Merquior, parece a cada dia mais alto…
Dentre os mais novos estudiosos da obra freyriana, desponta agora — em ensaio contemplado com o “Concurso Nacional de Ensaios – Prêmio Gilberto Freyre 2016/2017”, promovido pela Fundação Gilberto Freyre em parceria com a Global Editora — o goiano Gustavo Mesquita, Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. O título de Mesquita (recentemente lançado como livro no Recife) logo nos diz a que veio: “Gilberto Freyre e o Estado Novo: região, nação e modernidade”. Na sóbria e bela capa do exemplar, uma pequena foto de Freyre apertando a mão de Getúlio Vargas não deixa dúvida: o sorriso de ambos sela uma talvez indisfarçável e empática aliança.
Não é preciso ser profundo conhecedor de Freyre e de sua fortuna crítica para logo se perceber a novidade: Mesquita explora um tema praticamente inédito — as relações do sociólogo-antropólogo com o Governo Vargas. Relações que, ao que parece, ao fim e ao cabo da análise empreendida, tanto foram proveitosas para o intelectual como para o regime e seu nacionalismo prático e militante. Várias obras de Freyre — a exemplo de “Casa-grande & Senzala”, “Sobrados & Mucambos” e “Nordeste” — vão servir de forte insumo ao ideário sociocultural de Vargas e seu governo, em especial junto ao então Ministério da Educação e Saúde capitaneado pelo prestigiado e prestigioso Gustavo Capanema.
É interessante observar, na esteira da análise do ensaio, como as digitais do intelectual pernambucano estão por trás de grandes realizações do Estado Novo, a exemplo da criação do Instituto do Açúcar e do Álcool, do Estatuto da Lavoura Canavieira, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, da nova forma de regionalizar o País (o regionalismo freyriano ajuda a ferir de morte o velho estadualismo da República Velha), dos primeiros e decisivos tempo do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan, hoje Iphan). Não obstante essa presença freyriana tão ágil e política em sentido lato, Mesquita também não se furta a mostrar os pontos de ambiguidade e tensão entre o escritor, então já célebre, e o poder autoritário e centralizador de Vargas; afinal de contas, como lembra Fernando Henrique Cardoso em “Pensadores que inventaram o Brasil”, Freyre “[…] viu na urbanização e na industrialização a ameaça ao que de melhor havia em nossas tradições culturais”.
Sem se perder em julgamentos de valor, de resto perfeitamente evitáveis numa obra analítica e descritiva, Gustavo Mesquita, de par com a quase onipresença de Freyre na paisagem intelectual do Brasil de então, termina por nos levar, não a passeio, mas em planejada e erudita viagem a um tempo histórico e social que, a despeito de sua feição autoritária, lançou as bases de nossa precária modernidade.
No frigir dos ovos, ao fim da leitura de “Gilberto Freyre e o Estado Novo”, talvez valha a pena mencionar uma imagem que o próprio escritor gostava de lembrar, muito provavelmente pensando em seu próprio caso: a dos gatos que, ao se roçarem nas pessoas, ao contrário do que parece, estão na verdade se agradando a si mesmos.
Paulo Gustavo
Recife, 14 de junho de 2018
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