Nos últimos trinta anos, o País tem conhecido muitas mudanças na interpretação e compreensão de seu passado. A visão estruturalista que dominou a história do Brasil até os anos 1970, centrada no papel do Estado e no comércio internacional, baseada no mercado de mão de obra escrava e exportação de produtos agrícolas, aos poucos está sendo refinada. Novas abordagens, novos métodos (em particular os quantitativos, que se tornaram possíveis graças à digitalização de documentos históricos) e novos temas têm surgido, em meio a uma farta bibliografia. Inicialmente produzida por jovens historiadores (as) brasileiros (as), e hoje articulada a historiadores portugueses, a recente produção bibliográfica quebra alguns mitos criados pela bibliografia pretérita. O artigo, não tão recente, de Stuart Schwartz (2009) na revista História: Questões e Debates, traz um denso resumo das aquisições produzidas entre 1988 e 2008, sobretudo a respeito dos três primeiros séculos da História brasileira. Segundo o autor: “Essa tendência foi influenciada, do ponto de vista teórico, por um processo de transformação nas ciências sociais, pela guinada cultural na História, por novas tecnologias da informação – digitalização e internet – e por uma série de comemorações que geraram um suporte institucional de publicações, colóquios e pesquisas”. Com isso, foi possível redescobrir as relações e o papel da população nativa na construção da nova Nação (História dos Índios do Brasil, 1992, Manuela Carneiro da Cunha, e Negros da Terra, 1998, John Monteiro, além dos trabalhos de Viveiros de Castro e Frank Lestringant, este último sobre a França Antártica). Esse interesse renovado pelos indígenas, ademais dos escravos e seus descentes, e das mulheres, enquanto agentes históricos, permitiu romper as interpretações estruturalistas e desvendar a agência humana. Acrescido do trabalho de outros pesquisadores sobre a economia interna e a importância da agricultura “camponesa”, contribuiu para a ruptura com a visão dualista traduzida nos embates: colônia x império, poder central x poder local, senhor x escravos. Gradativamente, substitui-se a visão simplista e bem organizada do Brasil pela complexidade e diversidade dos seus conflitos e agentes sociais.
Claro que esta literatura provocou reações, debates e contradições, com expoentes importantes, como Laura de Mello e Sousa que, aparentemente, escreveu a mais séria crítica aos novos “tropicalistas”, como cita Schwartz, destacando a profunda influência da escravidão no Brasil.
Outros trabalhos, muitos outros, como os de Edvaldo Cabral de Mello e José Murilo de Carvalho, têm contribuído para esta nova visão das raízes, mais antigas e mais recentes, do Brasil. Isso para citar apenas alguns, dentre os mais conhecidos.
Se a produção científica tem crescido e mudado a visão sobre a História do Brasil, alguns não historiadores, como Eduardo Bueno e Jorge Caldeira, um de forma mais simples e outro mais sofisticada, têm contribuído para que este novo conhecimento transborde o universo acadêmico e profissional dos historiadores e alcance o grande público leitor.
O último livro de Jorge Caldeira – História da Riqueza do Brasil: Cinco séculos de pessoas, costumes e governos– traz parte dessa supracitada produção acadêmica, com algumas teses que são importantes para compreender por que somos como somos. A contradição permanente entre a ordem hierárquica da desigualdade do antigo regime, das Ordenações Manuelinas, da noção europeia da norma, da ordem escravocrata, contrapõe-se e articula-se com a horizontalidade das relações entre os nativos, a solidariedade entre os negros rebeldes e a informalidade hierárquica entre os vaqueiros nos grandes sertões. Assim como a luta entre a pujança da economia informal e a rigidez da burocracia estatal, e o jogo entre concepções distintas de ordens legais.
Dito de outra forma, os novos trabalhos sobre a nossa História permitem entender um pouco melhor as continuidades, assim como as rupturas, em nossa estrutura sociocultural: a tensão entre sociedade, flexível e inventiva, e Estado, autoritário e rígido; as contradições de nossas instituições, em particular entre o império da lei e o patrimonialismo e o fisiologismo; o peso do corporativismo em todos os escalões; o artifício da informalidade e a flexibilidade da ordem jurídica; a permissividade cultural em relação aos costumes e à aplicação da lei. A permissividade, generalizada, em relação ao que é ilegal. E, sobretudo, a persistência do antigo regime, teimando em manter a distribuição de bens desigualmente. c. Como a “exquerda” criou, com sua narrativa monocórdia, uma realidade inexistente, que lhe impede de compreender as mudanças sociais, cada vez mais rápidas.
Entende-se melhor, assim, a teratologia jurídica, a aplicação diferenciada da justiça, a supremacia das relações sociais sobre o império da lei, a presença de personagens incompetentes nos altos escalões, o Parlamento vocacionado ao escambo. Ante uma ordem estrangeira e esdrúxula, com regras que enrijecem as relações sociais efetivas, inventa-se o jeitinho, o compadrio e as maracutaias. O leque das formas de contornar a lei, das menos nocivas às mortais, está disseminado nos domicílios familiares.
Entende-se porque nosso líder democrático é uma fantasia, pois apenas restam os coronéis de asfalto, os milicos autoritários e os personagens messiânicos. Desesperam-se os que pretendem renovar a política, esta realidade metafísica. O povo não se interessa por uma nova política, ele espera a resposta de suas demandas imediatas. Esperam, todos, que um salvador da pátria conserte aquilo que nos é intrínseco, entranhado em nosso tecido social. E recriam as imagens de nossos candidatos, pois afinal não votamos em alguém, mas numa imagem que criamos e recriamos, segundo nossos interesses, valores e percepções. A democracia é cada vez mais uma quimera. Uma farsa que se desnuda, lentamente.
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