Quarta-feira passada, dia 18 de julho, fez exatamente um ano que recebi, por volta do meio-dia, um telefonema estranho da minha colega e amiga professora Conceição Lafayette, perguntando com certa insistência onde eu estava. Não lembro se ela fez a clássica pergunta – “você está sentado?” – que precede notícias ruins. De fato eu estava me sentando no quiosque perto de casa onde costumo tomar uma cervejinha a título de aperitivo antes do almoço. Lembro-me bem de ter sentido uma pequena vergonha em confessar que estava num boteco num dia de semana, e apenas disse que estava indo para casa – o que era de certa forma verdade. Não sabia que a “latinha” que já havia comprado e aberto seria jogada fora; que sairia do quiosque para casa quase correndo, tremendo e gritando in petto– eu que sou agnóstico: “Meu Deus! Meu Deus!”. Fernando (Fernando da Mota Lima para seus leitores), meu maior amigo íntimo nos últimos vinte anos, estava morto.
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– Luciano, é sobre Fernando, você soube?
– O quê?
– A faxineira chegou de manhã e a porta da cozinha estava aberta, e ele estava deitado no chão, com o gás aberto.
– E onde ele está?
– No IML.
– Fernando morreu?
– Sim.
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“Uma sucessão de acasos afortunados cruzou minha vida com a de Luciano Oliveira e desde então temos nos divertido imensamente juntos” – escreveu Fernando da Mota Lima certa feita a propósito da nossa amizade. E, de fato, como nos divertimos! O leitor que tenha conhecido Fernando apenas pelos seus textos eruditos (lembro, por exemplo, a série Memórias de um Leitor, publicada aqui mesmo) – que, para minha inveja, ele escrevia praticamente de uma sentada –, não pode imaginar o quanto palhacento ele se permitia ser no espaço do que chamava de “privilégios da intimidade” – uma de suas expressões que nunca esqueci. Nos últimos tempos, porém, ele foi se tornando mais e mais sombrio, e achando menos engraçadas as brincadeiras que fazia com ele e seu estatuto de “Monsenhor Mota” – como às vezes o tratava. Queixando-se cada vez mais de dores no corpo, foi deixando de rir quando, ao telefone, eu o saudava assim: “Ai… professor / minha vida é um eterno sofrer…” – parafraseando Doce Amor, um velho sucesso de Carlos Galhardo que ouvíamos na infância: ele em Igarapeba (PE), eu em Itabaiana (SE); as mesmas dores que, no passado, quando nos divertíamos “imensamente juntos”, eram motivo de constantes sarros que tirávamos um da cara do outro, e que certa feita o levou a escrever um hilário Poema do Masoquistaque começava assim: “Ser é doer! / Diz o analista ao masoquista que já avista a dor chegando”. Pensando bem, talvez as dores mais recentes já não fossem as mesmas…
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Era um humanista erudito à moda antiga, daqueles para quem a existência de uma “alta cultura” – sobreposta à “baixa cultura” da indústria cultural – sempre foi um axioma. Não sei se gostava ou não de Bob Dylan, mas sei que considerou a atribuição do prêmio Nobel de literatura a ele mais um sintoma da decadência cultural própria do nosso tempo. Sonhava, acho, com uma polisonde só teriam direito de entrada quem amasse Montaigne e Machado (acho que os dois autores que mais constantemente leu) – alguma confraria como o “Sabadoyle” do bibliófilo Plínio Doyle, que alguém já definiu como o “último salão literário do Brasil” e que reunia todos os sábados, no Rio de Janeiro, gente do quilate de Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Cyro dos Anjos… Já perceberam o nível, não? Quando ligava para ele, muitas vezes ouvia Bach como música de fundo no seu apartamento. Mas na polisde Fernando haveria também lugar para quem amasse, como era o nosso caso, Cartola e Assis Valente, e quantas e quantas vezes, nos saraus musicais reunindo amigos comuns, cantávamos a dois, imitando Dick Farney e Lúcio Alves, Teresa da Praiade Tom Jobim! – este, seu deus supremo da chamada MPB.
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Tendo sido a vida inteira – as definições são dele próprio – um “desenraizado” e um “desintegrado”, Fernando tinha um sacro horror ao nosso gregarismo e à “falsa intimidade” (outra de suas expressões que me ficaram) tão própria dos nossos usos e costumes. Viveu a vida inteira só. Literalmente só – mesmo quando amava, nunca viveu junto. Tinha medo – senão horror – de partilhar seu cotidiano com alguém. Sabia, como todos da nossa geração soubemos quando lemos Hemingway e tomamos conhecimento da existência de um poeta inglês chamado John Donne, que “nenhum homem é uma ilha”. Fernando por certo também não era, mas, penso agora rememorando sua vida de renitente solteirão (bachelor, como talvez o anglófilo que ele era preferisse), o máximo que se permitiu foi ser, de vez em quando e momentaneamente, um istmo. Chamava isso de “autonomia” – e eu discordava.
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Os achaques da velhice que se instalava faziam-no sofrer cada vez mais, e sentia-se muito mal na dependência de uns e de outros para ir a médicos e hospitais. Certa feita chegou a me dizer que não iria “suportar a piedade dos amigos”. A autonomiatinha se transformado em solidão. Alguns meses antes do desenlace, começara, como sói acontecer com os suicidas, a dar sinais de que se mataria. Junto a mim, chegou a se recriminar por não ter coragem suficiente para fazê-lo. Mas, como também sói acontecer, os amigos costumam não levar suficientemente a sério os avisos. Num domingo à noite, na última vez em que nos falamos, por telefone, chegou a descrever como seria: encheria o liquidificador com whisky e todos os ansiolíticos que tivesse em casa, bateria e beberia tudo. E para não haver erro, abriria o gás. Foi a ocasião da nossa última brincadeira (pelo menos da minhaúltima brincadeira). Eu lembrei-lhe o suicídio de Péricles, o cartunista criador do famoso Amigo da Onça, adorado pelos leitores da revista O Cruzeiroda nossa infância. Péricles também abriu o gás, e aproveitou a ocasião para fazer a última piada da vida: do lado de fora da porta da cozinha onde tinha se trancado, escreveu um recado: “Não risquem o fósforo!”. Ele riu. E foi assim, às gargalhadas, que nos despedimos. Dois dias e meio depois, recebi o telefonema de Conceição Lafayette… e fiquei com aquela culpa que sentem os sobreviventes dos suicidas.
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Fernando se matou em algum momento entre a noite de uma terça-feira e a madrugada de uma quarta-feira. No fim da tarde da quinta-feira, o enterramos. Entre os amigos presentes, estava Joanildo Burity, homem de ciência e, ao mesmo tempo, de religião. Nos últimos meses de vida, presa de uma angústia que nada aliviava, Fernando, que sempre encarou o fenômeno religioso como uma “infantilidade” – como Freud o definiu no clássico O Futuro de uma Ilusão–, tentou se valer do socorro cristão, indo com Joanildo alguns domingos ao templo anglicano que ele frequentava. Aparentemente, em vão. Ao encontrá-lo junto ao nosso amigo dentro de um caixão, eu lhe disse mais ou menos isso: “Pois é, Joanildo, nem Deus salvou o nosso amigo”. Ao que ele respondeu: “Isso, meu amigo, nós não sabemos”.
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