No artigo passado, procedi a um longo resgate das reminiscências gravadas na memória dos anos de 1958, 1962, 1966, 1970, 1974, 1978 e, finalmente, 1982, quando sucumbimos a três gols pelos pés do italiano Paolo Rossi, o que levou a que o futebol elevado à arte cênica jamais voltasse a ser o mesmo. Quem se der ao trabalho de ir até “Fim de festa no estádio do Sarrià“, publicado aqui mesmo nesta “Será?”, também verá que me arrisquei a dar pinceladas até sobre as Copas que não vivi, tais como as de 1950 e de 1954, quando ainda sequer era nascido. Cada uma delas, à sua maneira, marcou os tempos em que ocorreu e, de certa forma, nos remeteria aos anos de ouro que culminariam com o glorioso tricampeonato, sucedido em 1970, no estádio Azteca, no México. Hoje, 14 de junho, uma vez a Copa de 2018 devidamente aberta – com folgada vitória da anfitriã Rússia sobre a Arábia Saudita por 5 x 0, alguns dos gols até muito vistosos -, nos debruçaremos sobre o que aconteceu dentro dos campos, e sobretudo fora deles, entre 1986 e 1998, intervalo em que nos tornaríamos tetracampeões nos Estados Unidos, em 1994. Um aviso à guisa de introdução, se o leitor me permite interferir em sua decisão. Mesmo que você não goste de futebol, ou até mesmo se for o caso de detestá-lo, posto que isso acontece, tenho certeza de que curtirá essas reflexões. A tirar pela receptividade que teve a primeira parte, temos tudo para compartilhar aqui novas alegrias e umas tantas angústias em que futebol é sim um primoroso protagonista, mas também, não rara vez, mero coadjuvante de luxo para que fabulemos o mundo em torno das cores da camisa Canarinha, no tom nem sempre amistoso, é verdade, deste narrador intransigente, e, por que não admiti-lo, assumidamente passional. Pois bem, vamos, portanto, ao pontapé inicial de nossa jornada. Ela começa no México. E, como veremos, dessa feita o país da música “Cielito lindo” não foi o palco multicolorido do tricampeonato, 16 anos passados do Tri. Pelo contrário, fomos eliminados por conta de uma sucessão de erros. E, é claro, porque os outros também jogam bola, como já aprendemos. Até mesmo com a mão, se esse for o preço a ser cobrado pelo triunfo.
1986, México
Aos 28 anos, eu estava decidido a fazer minha estréia numa Copa do Mundo. Nunca uma primeira vez tardara tanto a chegar. É verdade também que jamais trabalhara àquele ritmo trepidante, com compromissos nos quatro cantos da Terra. Mas isso haveria de me facilitar a vida, e não estava ali para dificultá-la. Na primavera europeia daquele ano, combinara com amigos de nos vermos das quarta-de-final em diante no México. No meu entender, o Brasil passaria sem dificuldade pela Espanha, Argélia e Irlanda do Norte, o que efetivamente aconteceu. Ganhou pelo placar mínimo os dois primeiros jogos e fez três gols contra o último. Nosso técnico ainda era Telê Santana, a despeito da Tragédia do Sarrià, 4 anos antes, e, pensei, o raio não cairia no mesmo lugar duas vezes. Ademais, o México era nossa casa e tínhamos em nosso favor uma torcida vibrante. Na tarde do dia 16 de junho, ganhamos da Polônia por 4 x 0. No dia 21 de junho, jogaríamos contra a França e eu queria estar em Guadalajara no dia 25 para ver o confronto contra o ganhador de Alemanha versus México, o que não seria fácil em qualquer caso. Tinha passagem para a Cidade do México no voo da Varig do dia 22 e lá ficaria até 29, na hipótese de irmos à final. Então seguiria viagem para o Japão, via Los Angeles, e só voltaria da Ásia um mês mais tarde. O casamento começava a transpor os limites do suportável e respirar os ares do mundo era vital para minha alma sôfrega. Foi na alameda Ministro Rocha Azevedo, no edifício Yamit, que nos reunimos com amigos para ver o jogo contra a França, mais precisamente na casa da amiga Silvia Finkelstein. A partida era renhida, mas estávamos no bom caminho. Careca marcara para o Brasil e o astro Platini para os gauleses. Então os ventos viraram. Num pênalti determinante a nosso favor, Zico pegou a bola e decidiu batê-lo. Opaco durante a Copa, machucado e misteriosamente poupado de corte, era um jogador quebra-galho que viu naquele lance uma chance de levantar o perfil. Pois bem, de musculatura fria, perdeu-o. Fiquei possesso. Na prorrogação, o placar não se moveu. Na disputa de cinco penalidades, percebi que as pernas de Dr. Sócrates pesavam toneladas e, efetivamente, ele terminou desperdiçando a que lhe tocou. Mas Platini veio em nosso socorro e também perdeu a dele. Na quinta e última cobrança em nosso favor, um preto com nome de imperador romano deu um chute tão brutal na trave, mas tão forte, que ela treme até hoje. Estávamos fora da Copa, apenas 4 anos depois do Sarrià. Dois dias mais tarde, eu tomava um coquetel à base de tequila nos bares da Zona Rosa da capital. Conversei então com um velho cartola que partiria para a Disney com os netos no dia seguinte. “O que foi que houve, chefia?” “Isso é futebol, meu irmão. O Zico foi fominha. E o negrão Júlio César estava branco quando chutou aquele petardo na trave. Telê fez o que pôde, coitado”. Quem já não tinha mais saco para o futebol era eu. Aproveitei que estava lá e denunciei o Acordo de Alcance Parcial nº 21 da ALADI, pedindo suspensão das importações de sulfato de sódio calcinado do México por desrespeito à preferência de compra de nitrato de celulose do Brasil, fornecido por nossa empresa. Era o fim do Fernando paz e amor. Que o dissesse o então Embaixador Gastão Bandeira de Melo, um bom amigo, precocemente falecido. Declarei guerra aos poderosos irmãos Vásquez Raña e meu representante disse que minha vida doravante valia muito pouco entre Monterey e Yucatán. O que me importava? Voei para Tóquio disposto a aprender a jogar golfe e a nunca mais falar de futebol. Foi a Copa de Maradona, um gigante num corpo de pigmeu, mas inspiradíssimo. Dessa vez, ganharam a Copa com toda legitimidade. E até gol de mão ele fez.
1990, Itália
Eis que de repente eu já tinha 32 anos. Separado, namorando febrilmente em Nova York e passando mais tempo no Oriente do que no Ocidente, a Copa da Itália não estava me mobilizando sobremodo. Mas como sempre acontece, à medida que fomos nos aproximando da data, veio o interesse de me inteirar dos fatos e de falar com quem era do ramo. Se tive fecundo amor por Telê Santana, com quem conversei uma vez longamente nos anos 1990 numa feira de Utilidades Domésticas, em São Paulo, ganhasse ele ou não, a figura do treinador Sebastião Lazaroni me inspirou uma espécie de repulsa imediata. Produto dos campeonatos cariocas em que triunfara pelo Flamengo e Vasco da Gama, tinha algo de impostor naquele mineiro amante de evasivas, ares soturnos, olhares oblíquos e tão pouco frontal. O Brasil ficou acantonado em Turim e nem as imagens idílicas do Estádio delle Alpi me balançavam a ir até lá e descolar um quartinho com vista para o Mont Blanc. O cardápio da fase de grupos era aquele trivial insosso que costuma ser em muitos casos: Costa Rica, Suécia e Escócia, de quem ganhamos sem maior brilho. Na verdade, para bom entendedor, a Copa começaria mesmo no jogo das oitavas-de-final, contra a Argentina. E esse jogo terminou me perseguindo pelas piores razões possíveis. Certo mesmo é que Maradona descobriu Caniggia a dez minutos do fim da partida e nos ejetou da competição com um gol solitário do centro-avante endiabrado. Ora, vendo a cara de Lazaroni na televisão, por uma vez até então me ocorreu que teria um certo prazer em matar um homem, se isso estivesse a meu alcance. E que sendo ele a vítima, não sentiria quaisquer remorsos. Mas meu alvo talvez devesse ser outro, se pensasse friamente. Isso porque voando um dia de Malpensa, em Milão, para o Rio de Janeiro, vi-me ao lado de uma mulher com ares de carioca suburbana que era bastante bela, estava sofrendo uma dor de dente cruel e ainda tinha aos pés um garoto chato a quem ela se dirigia com fortíssimo sotaque napolitano, certamente aprendido com babás nativas, achando talvez que aquilo fosse mesmo italiano. Então contou-me que o marido era jogador de futebol e que entre as quatro linhas era conhecido como Alemão. Foi mais longe. Disse pois que viviam fazendo churrascos para os melhores amigos aos pés do Vesúvio. Eram eles o também brasileiro Careca, que ela chamava de Antonio, e um certo Diego, casado com Claudia, que era ninguém menos do que Maradona. Meu sangue ferveu. Era o começo da globalização do futebol, o que valia dizer que as relações pessoais contavam mais do que as cores nacionais. Ora, jogando os três no Napoli, isso explicava porque o marido dela não tinha desarmado com vigor o hábil Diego quando era óbvio para um cego que ele lançaria Caniggia rumo ao gol brasileiro, o que nos mandou de volta humilhados. Explodi. “Pois fique você sabendo que seu marido alisou Maradona quando deveria tê-lo partido ao meio. Era hora de ter esquecido que era o amigo Diego que estava em campo e sim o algoz Maradona”. “É o que todo mundo diz, querido, mas somos tão amigos, somos tão família”. Era uma bela mulher, mas perdi naquele instante qualquer condição de continuar falando sobre sua vida nas encostas de Battipaglia. E muito menos de sua dor de dente ou de seu bambino chorão. Pedi licença e fui sentar mais adiante onde pudesse ficar só. Se tivesse aprendido golfe com meu amigo Mill Cheng, em Taiwan, conforme me prometera, nada disso estaria me fazendo sofrer. Menos mal que Diego não levou a Taça e os alemães triunfaram.
1994, Estados Unidos
Certa feita eu conversei longamente com João Havelange na recepção do hotel Baur au Lac, de Zurique, onde ele residia. Foi lá que anos mais tarde, a polícia estourou um encontro de cartolas, o que baniu do cenário muitos medalhões do futebol e da malandragem, se é que essa mescla pode ser indissociável em alguma latitude. Eu levara o diretor da Siber Hegner ao carro, o solene Herr Wirz, e já me preparava para subir para o quarto quando o vi dando instruções por sobre o balcão. Sendo Havelange bom amigo do velho José Ermírio de Moraes, meu chefe indireto, papeamos a valer e ele me falou naquele dia dos anos 1980 que o futebol só se consagraria planetariamente no dia em que uma Copa fosse realizada nos Estados Unidos. Pois bem, em 1994 se cumpriria a tal desiderata do grande capo. Para mim, ganhar a Copa em Los Angeles ou Dallas tinha o mesmo sabor que ver o balé Bolshoi em exibição em Ouagadougou, capital de Burkina Faso, ou na vizinha Assunção. Foi assim que sequer me abalei a ir à Costa Oeste para ver a fase de grupos, apesar de ter parentes que lá residiam. Nesta fase batemos a Rússia e os Camarões de aperitivo, e ainda empatamos com a invariável Suécia, adversário clássico da Seleção. O primeiro jogo crítico foi justamente contra os donos da casa, em Stanford, onde ganhamos por 1 x 0. O lateral Leonardo, um dos únicos atletas capazes de falar um minuto sem golpear o português, deu uma aula magna de karatê ao mundo, ao desferir uma cotovelada homicida no rosto de um jogador americano. Riu amarelo e levou cartão vermelho sobre o verde sintético do gramado. Em Dallas, passamos por uma verdadeira provação ao bater a Holanda por 3 x 2, depois que Branco, esperto e ladino, cavou uma falta sob medida, que ele próprio converteu. O tetra ficou palpável quando batemos a Suécia – sempre ela – por 1 x 0, gol de Romário, que eu via com frequência no Camp Nou, em Barcelona, onde o baixinho conheceu o auge. A partida final, no Rose Bowl, de Pasadena, distrito de Los Angeles onde impera largo contingente de população de origem armênia, foi contra a Itália, cuja maior estrela era um metrossexual tido por muitos como um budista espiritualizado, que confiava a um cabeleireiro plantonista os cuidados com um discreto rabo de cavalo trançado. O jogo foi excruciante, mas nada levava a predizer uma derrota. O capitão Dunga era efetivo no comando e o futebol estava longe de exuberante, salvo no oportunismo do ataque. Foi o mesmo Roberto Baggio quem desperdiçou um pênalti fatal, levando Galvão Bueno a um transe em que só se ouvia “é tetra, é tetra, é tetra…” Diz ele ter vergonha dos gritos quando os ouve hoje. Eu não teria. Sequer por ele, pois foi sim um desabafo espontâneo, embora meio catatônico. Quanto a mim, eu estava embriagado. Acompanhado de meu querido amigo Cadu e de uma cortesã que trouxera da capital para morar comigo uns tempos e ver se descobríamos outras afinidades além das básicas, abri uma garrafa de Dom Pérignon e fui até a janela gritar como um celerado. Os carros começavam a subir a alameda Campinas rumo à avenida Paulista e revimos exaustivamente as cobranças de pênalti, incrédulos de constatar que desde os 12 anos não sabíamos que prazer era aquele, o bom Cadu e eu. A alegria era palpável e contagiante. Que Dunga fizesse os desabafos dele e encarnasse a apologia do futebol feio, truncado e dito de resultados. Doze anos tinham transcorrido desde a tragédia do estádio Sarrià, em Barcelona, arena que eu me recusava sequer a ver quando visitava a cidade. Vivas, portanto, aos pragmáticos. Será que nos tornaríamos penta-campeões em meu tempo de vida?
1998, França
1998 foi um ano de que não guardo boas recordações. Sentindo que meu pai estava doente e que talvez fosse morrer logo, achei um cliente no Recife para ter uma boa razão para ir à capital pernambucana com frequência. Durante toda minha vida profissional, jamais ganhara um real no Brasil que não fosse no Sudeste ou no Sul, o que perdura até hoje. O Nordeste era onde se gastava dinheiro, jamais onde se poderia ganhá-lo. De mais, a cultura corporativa pernambucana era centralizadora, cheia de salamaleques autoritários e de rapapés que mal camuflavam desconfiança e atavismos. A base do pacto profissional era a confiança patriarcal e a previsibilidade, e não a criatividade e o desassombro. Por menos que eu tivesse que ficar no Recife contratualmente, o pouco que me cabia cumprir demandava um esforço desumano. Valendo-me da proximidade com a Europa, eu escapava todo mês para uma semana de visita ao Velho Mundo. Tanto assim fiz que estava em Paris a tempo de ver no Parc des Princes nossa vitória sobre o Chile, depois de termos perdido contra a Noruega em Marselha, ainda na fase de grupos. O prognóstico era minimamente animador e cancelei a volta para ver aquela que foi considerada a melhor partida da Copa da França: Brasil e Dinamarca, em Nantes. No trem, viajando para o oeste, fui papeando com os jornalistas brasileiros e me divertindo com as histórias que Flávio Prado e José Trajano contavam. O jogo foi um show de virtuosismo de meu conterrâneo Rivaldo, com quem três anos depois, conversei no vestiário do Barcelona para lhe apresentar meus enteados, antes de um jogo contra o Valencia. Sai de Nantes de alma lavada, depois de beber hectolitros de Carlsberg com os simpáticos dinamarqueses, que estavam felizes apesar da derrota. No estádio, conversei com o pernambucano Marcos Vilaça que, de chapéu Panamá, percorreu com a esposa todo o périplo da Seleção, sob o pretexto de divulgar a flor do Lácio. A agenda me impediu de ir a Marselha onde eliminaríamos a Holanda dias mais tarde. Na partida final, contudo, estava no Recife e cheguei à casa de um amigo naquela região de Boa Viagem que lá é conhecida como Setúbal. Era um dia feio e nada prenunciava coisa boa. A meu lado, um sujeito maníaco e notório azarado tentava me convencer de que podia ajudá-lo a vender um pó de nome Herbalife para que ele comprasse um carro esporte. Vi que o desastre se desenhava com nitidez e que a única coisa simpática daquela tarde seria a propaganda da Parmalat que apresentava crianças em calorentas indumentarias de bichinhos. Chegaram então os rumores da convulsão de Ronaldo. Para piorar, Zico e Zagalo tinham cortado Romário por picuinhas torpes, e o peso da responsabilidade esmagava nosso artilheiro. Edmundo foi escalado para a final, mas o gorducho entrou em campo, cabisbaixo e sorumbático. O que seria aquilo? Pressão do patrocinador? A história mais verossímil que corria era a de que ele soubera que a namorada Suzana Werner, que casaria mais adiante com o goleiro Júlio César, fora vista aos beijos num bateau mouche com o galã e repórter Pedro Bial. Pelo sim pelo não, uma dor de corno não é aperitivo adequado para jogar uma final contra os donos da casa. Certo é que Zidane nos despachou para casa de fundilhos quentes. Não cheguei a lamentar tanto, afinal era só o primeiro título dos franceses. Meses mais tarde, numa tarde de sexta-feira, encontrei Bial na churrascaria Rodeio, em São Paulo. Gosto dele. Nascemos no mesmo dia, mês e ano. Disse-lhe então, embalado por quantidades industriais de bloody maries: “Bicho, aquela tua saidinha com Suzana nos custou caro, hein. Com tanta mulher em Paris, foste escolher justamente a que equilibrava nosso craque. Sacanagem”. Não fiquei para ouvir os argumentos bem humorados.
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