Luciano Oliveira

Jornaleiro.

Chego a mais uma Copa do Mundo na minha vida. A primeira foi no longínquo ano de 1962, em Itabaiana, interior de Sergipe. Brasil bicampeão mundial de futebol. Dela, tenho apenas lembranças muito vagas. Era um menino, e como lá em casa papai não tinha o menor interesse pelo assunto, tudo o que lembro resume-se a um bando de torcedores (feito um “bloco de sujos”) bebendo e soltando fogos na calçada de um armarinho que ficava em frente da “Farmácia de Oliveirinha” – meu pai – onde, naquele tempo, dava expediente nos horários em que não tinha escola. Um rádio instalado do lado de fora do armarinho transmitia não sei que partida. Foi também pelo rádio, na casa de uns e outros, que escutei, no meio dos chiados das “ondas médias, curtas e frequência modulada” da época, a decepção de 1966, na Inglaterra, onde o Brasil chegou como favorito e voltou com o rabo entre as pernas, eliminado já na primeira fase da competição pela seleção portuguesa, a sensação daquela Copa. Depois veio a apoteose de 1970, no México. Era a época da repressão barra-pesada aos grupos (armados ou não) de esquerda, sob a presidência de Médici, e os opositores ao regime se sentiam embaraçados ante o dilema de torcer ou não pela Seleção, cuja vitória seria (como foi) capitalizada pela ditadura militar. “Ninguém segura esse país!”, havia dito o presidente – e realmente ninguém segurou a Canarinho. A defesa era meio fraquinha, mas do meio de campo pra frente (Clodoaldo, Gerson, Rivelino, Jairzinho, Tostão e Pelé) a seleção brasileira foi o que muitos consideram o melhor time de futebol que já se formou no mundo.

Até onde dou crédito à minha memória, confesso que não me lembro de ter sido presa desse dilema. Eu era ainda um secundarista e torcia pelo Brasil. Era só isso. Morava em Aracaju e, embora a televisão já tivesse chegado por lá, Sergipe ainda não tinha sido integrado pela Embratel à Rede Globo. Tudo o que tínhamos era uma torre retransmissora que captava, disputando com o que chamávamos de “chuva de arroz”, as imagens geradas em Recife pela TV Jornal do Comércio. Em Aracaju, no começo dos anos 70, a “chuva”, estava para o visual assim como o “chiado” estava para o áudio em Itabaiana no começo dos anos 60. Uma emissora local, se bem me lembro, retransmitia, sem “chiado”, a transmissão da Rádio Globo, onde Waldir Amaral e Jorge Cury se alternavam na transmissão do jogo, um irradiando o primeiro tempo, e o outro, o segundo. Aí, a gente ligava a televisão, mas tirava o som, e ligava também o rádio. E assim não lembro direito o que “vi”, pois as lembranças daquela tarde de junho de 1970, um domingo, embaralham-se com o que – aí sim! – vi alguns dias depois da Copa: um especial do inesquecível Canal 100com os melhores momentos de todas as partidas, exibido nos cinemas. Brasil tricampeão mundial de futebol. Uma lembrança curiosa: na noite daquele domingo, com a cidade toda em festa, fomos eu, meu irmão e um amigo ao Cine Palace de Aracaju, onde assisti pela primeira vez a My Fair Lady. Era junho e chovia. Que me lembre, no cinema só havia nós três perto da tela e, lá atrás, um casal de namorados – provavelmente pouco interessados no que se passava na casa do professor Higgins, tirânico e misógino, enfiando um inglês de Shakespeare à iletrada Eliza Doolittle!

Fazendo as contas, vou para a minha décima-quinta Copa do Mundo. Olhando ao redor, a minha impressão é a de que o evento não desperta mais o interesse que já teve entre nós. Talvez não seja só impressão. Afinal, algumas semanas atrás, a imprensa divulgou uma pesquisa mostrando que 41% dos brasileiros não se interessam por futebol. E isso às vésperas de uma Copa. Como a mesma pesquisa informa que o percentual já foi muito menor, deduzo que muitos dos indiferentes de hoje já se interessaram um dia. Penso no meu caso. Já de algum tempo venho perdendo o afeto que sempre tive pela seleção. Lembro que em 2002 ainda vibrei muito com o time – sobretudo com Rivaldo, para mim o seu maior jogador. Mas, seguidamente, as decepções de 2006 e 2010 nem de longe se compararam à desolação que senti com a derrota daquele time sensacional de 1982. Em 2014, terminei de ver aquela acachapante humilhação de 7 a 1 imposta pela seleção alemã aos risos. Claro que aquilo foi risível, mas acho que não foi só isso. Quando, não faz muito tempo, a Canarinho ganhou dos alemães na casa deles por 1 a 0, nem cheguei a vibrar com o gol do Brasil (segundo uma brincadeira dos jornalistas alemães, agora o placar está 7 a 2…). A que será que devo essa quase indiferença?

Uma Copa do Mundo, hoje em dia, não é mais um campeonato entre seleções dos países e suas diferentes escolas de futebol, mas praticamente um torneio que reúne os melhores jogadores do mundo que jogam em times europeus! Antigamente, nossos craques, jogando aqui, de quatro em quatro anos se preparavam para ir jogar contra aqueles branquelos alemães e ingleses que jogavam lá. (Um amigo meu me advertiu de que havia um racismo [ainda que às avessas] embutido na minha fala, quando lhe disse que bom mesmo era o tempo em que nossos mulatos iam para a Suécia e davam um banho naqueles loiríssimos arianos… Será?) Nesse caso, a “culpa” é da globalização. E da mercantilização sem limites das relações que se dão nesse novo espaço mundial. Nas relações esportivas, onde o público consumidor, via TV, se conta por milhões (pensem num jogo Real Madrid X Barcelona), quiça bilhões (pensem numa final de Copa), as cifras envolvidas são astronômicas. As tentações, também. Um jogador fora de série como Neymar, por exemplo, vive tendo de explicar junto ao fisco espanhol, mas também brasileiro, “jogadas” típicas de sonegador milionário. Dir-se-á: “Ah… mas é todo mundo! Messi também andou encalacrado lá na Espanha”. Ok, tudo bem. Eu responderei que: a) Messi não é brasileiro, e nunca torci pela seleção argentina – assim, seu caso não me compete; b) sonegador ou não, Messi não é um boçal como nosso Neymar – e tenho dificuldades em torcer por boçais mimados por gente como Galvão Bueno… (Aliás, até dizem que Messi é autista. Se for, que bom!) Mas o diabo é que Neymar – independentemente da empresa chamada Neymar Jr.– joga bem pra caralho! Este artigo já estava quase pronto quando, no sábado da semana retrasada (02/06), assisti ao amistoso Brasil X Croácia, preparativo para a Copa. Neymar, depois de uma cirurgia no pé e de três meses no estaleiro, entra no segundo tempo e faz um gol de craque. Quando é ontem, domingo (10/06), último jogo preparativo: Brasil X Áustria. Neymar, que dessa vez atuou quase o jogo inteiro, faz outro gol mágico! Parodiando Zagallo, acho que vou ter de engoli-lo…

Repetindo-me: chego a mais uma Copa do Mundo na minha vida. De 1962 a 2018 (até me assusto!), são cinquenta e seis anos de existência… De lá pra cá já vi tanta coisa! Nunca fui daqueles torcedores de bandeirinha no carro, e não sou um patriota no sentido babaca do termo. Quando o Sargentão Dunga dizia que quem não torcia pela seleção não amava o Brasil, eu fazia um esforço danado para continuar torcendo pela Canarinho. É mais ou menos assim que estou me sentindo nesta véspera de Copa. Não sei qual será meu sentimento quando o juiz apitar o início do jogo do Brasil contra a Suíça domingo próximo – depois de depois de amanhã. Mas, sinceramente, estou torcendo para me emocionar pela décima quinta vez na minha vida.

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Nílton Santos era lateral esquerdo do Botafogo e da seleção, campeão mundial em 1958, na Suécia, e bicampeão no Chile. Era apelidado de “A Enciclopédia”, porque se dizia que sabia tudo de futebol. Foi uma criatura amável. Dizia que se considerava um sortudo, porque fazia na vida aquilo de que mais gostava: jogar futebol – e ainda lhe pagavam para isso! Da minha infância pra cá, o mundo mudou.