Fernando Dourado

Sócrates, Espanha, 1982.

Nasci em 1958 e tinha três meses de vida quando arrebatamos a primeira Copa do Mundo. Bem entendido, não tenho nenhuma lembrança desse ano da graça, o que nunca me impediu de estufar o peito e de louvar a coincidência dos fatos. Era como se no fundo, quisesse estabelecer, sub-repticiamente, na mente do interlocutor, que nascera sob o símbolo da glória, para que ele também me atribuísse, no plano de minha pobre individualidade, a aura vencedora do time então estrelado por Garrincha e Pelé. Seja como for, os anos foram dando senso de proporção crescente àquela data, o que nada contribuiu para que me tornasse mais modesto. Afinal, uma das histórias que mais me comprazia em ouvir, era a versão de meu pai sobre o grande desastre de 1950, quando perdêramos a final no Maracanã para o Uruguai. Ele nunca deixou de carregar nas tintas ao relatar as cenas de desespero que varreram o país de uma ponta a outra. Banquetes inteiros teriam sido jogados no lixo pois sequer os empregados domésticos se animaram a levar para casa os leitões assados e as travessas de galinha à cabidela, tamanha era a tristeza. O que é irônico é que justo naquele ano longínquo as pessoas comemorassem com tanta fartura e extravagância. Conforme veremos, eu já era adulto quando o Brasil ganhou umas tantas outras Copas, e nunca tive notícias das cascatas de camarões e das pirâmides de lagostas como as do tal Mundial manqué. O que me leva a crer que a frustração representada pelo evento, alforriou a cidadania a fabular do jeito que bem lhe aprouvesse o dia de infortúnio mesmo porque a dor é geralmente solitária, sem testemunhas e, como um compositor dizia, “não sai no jornal”. De qualquer forma, as cenas da saída do Maracanã são de inspirar pena mesmo nos corações mais desapiedados até hoje, tragédia que contagiou até os vitoriosos uruguaios. Sozinhos em Copacabana, os atletas da alviceleste não tiveram com quem comemorar a façanha e se recolheram meio acabrunhados ao ver a desdita que tinham causado por ocasião daquele que é considerado o maior feito do paisito em todos os tempos. Já da Copa de Mundo de 1954, disputada na Suíça, tudo o que me ficou até hoje, também de segunda, terceira e quarta mão, foi que a Hungria roubou o show. E que, no quadro de astros magiares, nenhuma estrela foi tão fulgurante quanto a de Ferenc Puskás, cuja lápide tumular farei sempre questão de visitar na Basílica de Szent István, em Budapeste, adornada por uma flâmula do Real Madrid, clube que sabe reconhecer seus grandes. Assim, se o fracasso brasileiro em 1950 trouxe à baila a fatalidade, muitas outras lições frutificariam mais adiante. Uma delas é a de que ninguém ganha um jogo de véspera e que a soberba é péssima conselheira. Já a derrota da Hungria em 1954, descortinou que no futebol nem sempre o melhor ou mais vistoso ganha. E como os eventos seguintes demonstrariam profusamente, o que dá cor especial a esse esporte mágico é justamente que as artimanhas dos nervos possam fazer ruir os mais sólidos blocos coletivos. Feitas essas digressões, voltemos a 1958 onde tudo começa, até que entremos em campo no próximo dia 17 de junho de 2018 em Rostov-on– Don, Rússia, para estrear contra a Suíça, naquela que será minha décima-sexta Copa do Mundo. 

1958, Suécia           

Quando cheguei à Suécia pela primeira vez, em 1985, passei dois dias em confabulações com o diretor geral da Klintens, uma fábrica de tintas industriais que era líder em seu segmento na Escandinávia. Hospedado no Grand Hotel, o palácio sóbrio e belo onde se alojam os laureados do Prêmio Nobel de Literatura, só fui me dar conta de que estava no país da primeira Copa que ganhamos quando chegou o fim de semana e pude me entregar às delícias dos passeios à beira do Báltico. Se meu interlocutor mais parecia um personagem de Bergman, a verdade é que todo mundo ali parecia saído da tela do cineasta. O falar era econômico, a voz frequentemente aspirada e as mulheres tinham ares de ser deliciosamente inconscientes da beleza que irradiavam. A culinária dos ambientes corporativos era sóbria e entremeada de enormes canecas de café aguado, o que me parecia uma espécie de perversão, enraizada no psiquismo suicida daquele povo mimado. Por outro lado, as esticadas noturnas eram pródigas em rodadas de destilados fortes e toda sorte de peixe defumado: salmão, enguia e arenque, sendo os principais, além dos crustáceos. O gerente industrial da fábrica, um sexagenário calvo que andava de alpercatas e meias de lã, confessou que assistira a duas partidas de futebol do Brasil na Copa de 1958. Tendo ido visitar os pais em Göterborg, vira a memorável contenda em que Garrincha empenou o zagueiro russo Kuznetzov. “Foi a coisa mais impressionante que vi na vida. Nunca vi o aplauso brotar de maneira tão espontânea. Aquilo simplesmente era inaudito no futebol, acredite. Sentíamos que estávamos vendo história”. Como perdera no sorteio familiar o ingresso da partida final para o irmão, teve que se contentar em ver o Brasil bater a França na semifinal por 5 x 2. “Foi aqui em Solna, perto de onde estamos, no estádio Rasunda. Vavá abriu o placar, logo no comecinho. Depois vi o magnífico Fontaine empatar. Pensei que fosse ser muito duro. Mas aí Didi abriu a vantagem e Pelé, aquele menino de 17 anos, fez três gols que nos levaram à loucura. Na final, disse a meu irmão: seja patriota e torça para a Suécia. Mas vou averti-lo: se você tiver que aplaudir o Brasil, saiba que não será nenhuma vergonha. Eles são magistrais. E assim foi. Meu irmão chegou de volta feliz, apesar da derrota”. Enquanto visitávamos o Rasunda, contei-lhe que Garrincha ainda fizera um filho na Suécia. Ele assentiu, pois a história era bem conhecida. “Mulheres gostam do exótico, Sr.Dourado, pode anotar isso para a vida, já que anda é jovem. Aliás, homens também”. Quando lhe disse que seu ídolo se arrependera de comprar um rádio por este não estar adaptado para o português, ele sorriu com tristeza: “Não acredito. É sempre assim: aos geniais, temos que lhes atribuir uma idiotice para nos esquecermos de nossa pequenez”. Em Göterborg, onde tenho a amiga Charlotta Brynger, fui ver tempos desses o velho estádio Ullevi, bem atrás do hotel Clarion, onde tomávamos drinques à noite. “O que foi que você fez hoje?”, perguntou ela certa noite, na véspera de viajarmos para Linköping, sede da indústria aeronáutica. “Fui visitar o ano em que nasci”. Então lhe contei o quanto amava a Suécia e como seu país estava incrustado nos dias em que vim ao mundo. “Como todo bom bebê, nunca mais voltaria a ser tão feliz quanto fui naqueles dias”. 

1962, Chile

Em 1962, convenhamos, já era bem crescidinho. Para quem navega com desenvoltura pelos desvãos da memória, contudo, meu acervo com respeito a meus 4 anos é pequeno. Onde estava quando o Brasil foi bicampeão? O que posso assegurar é que meu irmão então já completara um ano e certamente estávamos morando no Recife. No dia de nossa vitória sobre a Checoslováquia, mamãe completou exatos 30 anos e não tenho recordação de nenhuma festa especial. O mais provável é que estivéssemos em Garanhuns passando as férias de São João, e não sei sinceramente se já começara a estudar no jardim da infância Ana Rosa, ao lado do parque 13 de maio, onde integrei a salinha amarela, sendo as demais a rosa, a azul e a verde. Sem televisão e sem ver grande mobilização à volta, chegaria ao Chile aos 23 anos como gerente de exportação de uma indústria oftálmica. Já rodara a essa altura uns 25 países, mas a América Latina ficara para depois. Em visita a Viña del Mar com o saudoso Don Helmut Schilling, dono da rede de óticas do mesmo nome, e até hoje uma marca de tradição no país andino, pedi-lhe que me levasse para ver o estádio local onde batemos a Espanha e o México. Naquela primeira ida à costa, contudo, estava mais preocupado com outras coisas e não senti nenhum frisson especial. Bem diferente do ocorrido em 8 de março de 1984 quando, em nova visita a Santiago, Don Helmut chegou ao hotel – engalanado pela presença de Rivelino e Jairzinho – com duas entradas para assistirmos à partida entre o Colo Colo e um misto de convidados, amistoso que assinalaria a despedida de Elias Figueroa, um zagueiro estupendo que jogara no Internacional gaúcho. Agradecido, mostrei-me entusiasmado com o programa proposto, mas no fundo não estava tão eufórico, sequer quando ele enfatizou que fora ali que o Brasil se sagrara bicampeão. A razão para o abatimento é que fora naquele mesmo estádio que Pinochet confinara centenas de opositores. De mais, dizia-se que ali morrera Victor Jara, um cantor de baladas de forte apelo poético. Começado o jogo, jogaram garrafas no gramado, valendo-se da cobertura da imprensa para lavrar um protesto – passados pouco mais de dez anos da chegada de Pinochet ao La Moneda – contra uma repressão que, sem ter sido tão brutal quanto foi a da Argentina, mesmo assim fez dez vezes mais mortos do que a brasileira. É claro que gostei. Nunca tive simpatias por gente de uniforme, salvo por aeromoças ou enfermeiras. E quando, de preferência, as segundas não estejam no exercício profissional. O que dizer de militares arbitrando políticas educacionais como se o país fosse um quartel? Pouco se me dava que o Chile estivesse chafurdando na lama nos tempos de Allende. Importava que Neruda gostava dele e que o poeta era grande boêmio. Don Helmut me pediu para que saíssemos sob alegações patéticas. “Isso é um espetáculo urdido pelo comunismo internacional”. Fui enfático: “Señor Schilling, tenho 25 anos e já rodei o mundo. Os comunistas que conheci são invariavelmente idiotas. O buraco é, portanto, mais embaixo. Seu general é um gorila truculento e o sangue passou ali pelo rio Mapocho. Tomara que ele não morra dormindo. Somos amigos, temos negócios, não convém brigar por conta de imbecis. A verdade triunfará. Vamos jantar no Danúbio Azul? O convite é meu e não se fala mais disso”. Ele aceitou.    

1966, Inglaterra

Na terceira Copa de minha vida, eu já era um rapazinho de oito anos, talvez tão espichado quanto um de 12. E no entanto, são tão esparsas as lembranças de nossa Seleção. Ainda não havia televisionamento direito, mas as imagens chegavam regularmente em vídeo-tape, acho eu. Imagino alguém trazendo de Londres aquelas latas de filmes de que falava papai nos tempos em que trabalhou na aerofotogrametria da Cruzeiro do Sul. Das partidas em preto e branco, lembro dos pequeninos atletas da Coreia do Norte que corriam campo afora e que, afinal, não fizeram papel tão feio quanto alguns esperavam. Uns falaram até da ameaça amarela. Para nós, contudo, depois de sermos mimados por duas Copas consagradoras, restou o travo amago do triunfo de Portugal no confronto direto, comandado por Eusébio, a pantera negra. Pelo jeito, aquela foi a Copa dos moçambicanos, Eusébio e Mário Colona. O fulgurante Pelé foi caçado pelos algozes. Certo é que sequer chegamos a Londres. Nossa participação se limitou ao Goodison Park em Liverpool, que então estava sendo alçada a capital mundial da música pop com o advento de Lennon, Star, Harrison, McCartney e sua banda. Muitos anos mais tarde, quando eu precisava tirar imensas quantidades de línter de algodão das entranhas da Ásia Central, das margens do rio Amu Darya até o porto de Bandar Abbas, fui a Liverpool conversar com a Bauman & Hinde para fretar quantos navios fossem necessários para que os uzbeques não deixassem de cumprir o acordado. Um dos sócios quis me levar ao estádio, caso fosse de meu interesse. Fui polido, mas enfático: “Liverpool foi para nós uma espécie de no start, Mr. Hinde. 1966 foi por certo uma boa Copa para vocês, mas não para nós. Não quero parecer auto-referente ou um sore loser, mas prefiro não ver o estádio do Everton. Vamos lá, ajude-me com meu algodão e dê seu preço”. Em 1966, mais precisamente em Carnaby Street, Mary Quant encurtava as saias das meninas e os Swinging 60 acenavam para o mundo com sensualidade, liberdade e espiritualidade. E foi assim que voltamos mais cedo para casa. O que me ficou da Copa foi a grande polêmica que grassou na prorrogação da final, que envolveu a equipe anfitriã e a Alemanha. Ora, apenas 21 depois do fim da Segunda Guerra Mundial, aquela não era uma partida qualquer. O juiz suíço Dienst – um nome meio servil, para quem é do ramo – parece ter afagado a memória de Churchill em detrimento da de Herr Hitler num lance que favoreceria os visitantes. Uma década mais tarde, quando morei em Cambridge, as piadas envolvendo alemães ainda eram de regra. Certa vez perguntei a um taxista de Londres porque o sistema de numeração das ruas era tão confuso: “Tofool the Germans, mate“, respondeu sem pestanejar, talvez detectando em meu inglês resquícios do ano que eu ficara no Goethe-Institut, da Baviera. A grande figura dos campeões foi para mim Bobby Charlton, o primeiro jogador careca que vira em ação. Perguntei a papai como um homem velho podia jogar tão bem. “É porque ele não fuma”, disse. E então, acendeu um Carlton e voltou a atenção para a tela. Ah, como crianças sofriam naqueles tempos. Ninguém se preocupava em ser coerente com elas. Pensando bem, talvez fosse positivo. Fora da redoma do tatibitate bobo, pensávamos mais.            

1970, México 

Nada há de tão maravilhoso quanto a idade da razão: 12 anos, e que Sartre não nos ouça. Isso porque na Copa do México, transmitida ao vivo de Guadalajara e da capital, na inconfundível narração de Geraldo José de Almeida (“lindo, lindo, lindo”), eu não precisava mais da intermediação de quem quer que fosse para formar minhas opiniões abalizadas sobre rigorosamente tudo. Pouco se me dava que alguns no Ginásio e Aplicação fizessem associações entre os efeitos deletérios de uma vitória brasileira na Copa com o recrudescimento da face dura da repressão. Raros, porém, resistiam à magia de nossas cores na entrada em campo. Papai bem que tentou. Nosso primeiro adversário foi a Checoslováquia. E não é que tomamos um gol de Ladislav Petras, logo no comecinho do jogo? “Muito bem, muito bem”, gritava papai. “Acho bem feito. Você sabe quem é esse Petras? Certamente um especialista em cristais na Boêmia. Deve ser químico de formação e, nas horas vagas, toma a melhor cerveja do mundo, vai para a cama com as mais belas mulheres e, ocasionalmente, joga futebol. Não é como esses macacos suados que temos aqui que passam o dia correndo atrás de uma bola. Lá o regime valoriza acultura, aqui é só esbórnia”. Mas então Rivellino foi lá e fez um golaço de falta. Então, papai enlouqueceu. Foi à área de serviço do edifício Capibaribe e soltou de lá dois rojões de doze tiros em cima da fábrica da Antárctica. Na sequência, vibrou com os outros três gols, bebeu uísque, ficou meloso e disse a mamãe que ela lhe dera os dois maiores tesouros da vida que éramos eu e meu irmão. Eu pensava: afinal, ele era a favor ou contra o Brasil? Que espécie de socialismo era aquele? Nunca sofri tanto numa partida de futebol quanto penei até o sexagésimo minuto da partida contra a Inglaterra, quando ganhamos por um gol de Jairzinho, nosso furacão. Até a final consagradora, crescia em meu coração um profundo afeto pelo México, país com que simpatizava há tempos porque, segundo minha tia Alice, tivera o estofo de dar asilo político ao grande Trostky, inimigo jurado de Stálin. Este, um bandido de marca, terminara por infiltrar um assassino chamado Ramón Mercader para aniquilá-lo. Mas agora o México fora alçado à outra dimensão. Pois era tamanho o fervor com que torciam pelo Brasil que para mim seria doravante o segundo time do coração. Quando mais tarde, meu tio Luís, já prefeito de Garanhuns, comentou que pretendia batizar a praça da estação de Guadalajara, fui enfático em dizer que não poderia ser mais justo. Ele sorriu e me afagou a cabeça: assim seria. Iria muitas vezes ao México e entre 1985 e 1990 recebi ameaças de morte de um concorrente sanguinário na distribuição de nitrato de celulose. Meu amigo Jorge Treviño me recomendava trocar de hotel toda noite. Mas, no final, quebrei um cartel poderoso que favorecia um dos maiores grupos privados do país e abri as portas para muitos milhões de dólares de exportações brasileiras para clientes mexicanos. Apesar disso, nunca tive um só pensamento desairoso contra o México e seu povo. 1970 me vacinara e eu amava o estádio Azteca. Na comemoração do tricampeonato, improvisou-se um corso nas ruas do Recife. Empolgado, peguei emprestado um cinto colorido de minha mãe. Papai olhou o adereço tropicalista e mandou trocá-lo: “Veadagem aqui nem em vitória de Copa”. Fez bem.     

1974, Alemanha

Acho que àquela altura da vida, ainda não tinha ouvido falar de quem torcia por um determinado jogador, pelas origens de clube dele, e nem tanto pela seleção nacional. Isso naquela época já devia ser óbvio em algumas partes do mundo, se considerássemos que nem todo catalão ou basco se sentia representado pela seleção da Espanha, por exemplo. Nesse caso, torciam pelo sucesso pontual de alguns integrantes da equipe. Pois bem, em 1974 eu torcia mesmo pelo lateral-esquerdo Marinho Chagas, o potiguar que brilhou no Náutico antes de se transferir para o Botafogo e de lá para o mundo. Eu estava no estádio dos Aflitos certa tarde de domingo em que ele veio defender o ABC, time de Natal. Era um jogador tão completo que, sendo nosso adversário, não lhe poupamos os aplausos quando ele pegava na bola. Era um craque em todos os fundamentos. A torcida alvirrubra fez pressão para que fosse contratado e o dirigente Sebastião Orlando nos atendeu. Durante as 3 temporadas que jogou na Rosa e Silva, honrou nossa camisa. Em 1974, Copa em que a Holanda estava fadada a encher os olhos do mundo com seu carrossel mágico, eu torcia por Marinho. O destaque individual na ocasião foi outro calvo, o polonês Lato, cujo time ficou com o terceiro lugar e nós com o quarto, tendo sido eliminados pela Holanda nas semi-finais. Para quem vivera as alegrias de ter tido o melhor time de todos os tempos, foi difícil entusiasmar-se com empates contra a Iugoslávia e a Escócia ainda na fase de grupos. Uma vitória contra o Zaire tampouco incutiu otimismo. Foi revigorante ganhar da Argentina em Hannover e, no mesmo estádio, da vizinha Alemanha Oriental. No encontro fatal com a Holanda, francamente, não fosse por Marinho Chagas, diria que foi uma honra perder por dois gols, assinalados pelos geniais Cruyff e Neeskens, ambos tão rebeldes quanto nós, os alunos do Aplicação, que bebíamos, fumávamos e tínhamos grande desempenho. No final do ano seguinte, cheguei à Alemanha para estudar. Certa feita, saindo do estádio Olímpico de Munique, cidade maculada no imaginário do mundo por conta da inépcia da polícia germanicamente burocrática que permitira que os terroristas matassem os atletas de Israel, comentava com amigos locais sobre a Copa que eles tinham sediado no ano anterior. Então fui enfático. Gastando meu alemão da pior forma possível – com empáfia e soberba – disse que 1974 não fora nossa Copa porque simplesmente não estávamos bem. Um de meus bons amigos, o sério Norbert Ramm, não gostou de meu tom e perdeu por um momento a gentileza que lhe era peculiar: “Fernando, mein Freund, vergiss doch nicht dass die andere auch spielen können“. Essa simples frase em que ele me lembrava que independentemente da performance brasileira, os outros também poderiam jogar bem, foi um chamamento ao recato. Efetivamente, o narcisismo brasileiro entre as quatro linhas sempre foi um traço marcante. Com essa chamada, guardei a viola no saco e passei a ver o futebol de forma mais serena e ponderada. A partir daí, passei também a acompanhar as outras partidas e ver que nossos adversários podem ter virtudes. Quanto a meu ídolo Marinho, morreu cedo de problemas ligados ao álcool. Terminou a carreira no obscuro Augsburg, da Alemanha. Por mais de uma vez, vi-o na pérgola da piscina do hotel Miramar, seu endereço favorito quando vinha ao Recife.            

1978, Argentina

Precisaria de muito fair play para aguentar as terríveis provações que nos reservariam as Copas seguintes. A começar pela de 1978, jogada nos campos de nosso arquirrival, a Argentina. Em nenhuma hipótese porém, imaginava que só voltaríamos a botar a mão na taça em 1994, quando eu já tivesse completado 36 anos de idade. E que estávamos, portanto, fadados a um longo e penoso jejum de títulos, provação para a qual minha geração em especial não estava nada preparada. Aos 20 anos, em 1978, bem que poderia ter ido à Copa com amigos para ver um par de jogos. Mas a Argentina era um país inóspito e as pessoas desapareciam em massa para sempre. Na fase de grupos, nada era animador. Empatamos com a Suécia e a Espanha, e ganhamos por placar magro da Áustria. O técnico Claudio Coutinho era uma espécie de tecnocrata do futebol e sendo uma das únicas pessoas que sabiam falar com sujeito, verbo e predicado no meio futebolístico brasileiro, caiu na esparrela do hermetismo, uma mania nacional talhada para mascarar o charlatanismo. Para agravar o quadro, incorporou expressões em inglês ao dia-a-dia dos contatos com a imprensa e num país rústico como o nosso, isso tem tudo para levar o sujeito ao cadafalso do ridículo. Os jogos da seleção local eram uma celebração. Nas tribunas, via-se o bigode hirsuto de Jorge Rafael Videla num mar de quepes, sendo ele próprio um general sinistro. Seus sequazes não poupariam os organizadores de catimbas e pressões para que a Argentina levasse vantagem em tudo, a começar pelos horários e pela logística. O Brasil jogou a primeira fase em Mar del Plata, cidade onde nunca estive. A seguinte, em que lavrou vitórias contra o Peru e a Polônia, foi no estádio de Medonza, que eu só visitaria muitos anos mais tarde. Contra a Argentina, arrancamos um honroso empate em Rosário. Então, num dos episódios mais negros de todas as Copas, o Peru vendeu o resultado aos anfitriões para que ela fosse à final contra a Holanda. Ficamos em terceiro, depois de ganhar da Itália. Torci ardentemente pelos batavos na final, mas foi em vão. Videla e seus asseclas lograram os intentos. Nos campos, chovia papel picado e cortavam os céus intermináveis rolos, como se fossem de papel higiênico. As placas do gramado se soltavam a todo momento. Claudio Coutinho chegou ao Brasil falando que éramos campeões morais, no que até tinha razão. Mas o ridículo das expressões em inglês já lhe valera má fama. Morreu no fundo do mar anos depois, decretando que futebol e beletrismo não eram boa companhia um para o outro. Dois anos mais tarde, comecei a frequentar o país a negócios. Recusava-me a falar da Copa, salvo se fosse para ironizar e mais de uma vez fui tangido de bares por portenhos hostis: “Pelotudo, gordo boludo, no vuelva a hacer quilombo, che“. Por um desses sortilégios do destino, somando mais um elo à mesma cadeia que lhes valera uma Copa roubada, sobreveio a invasão das ilhas Falkland, da Grã Bretanha. Certa noite tomava um conhaque com Marcos Lázaro, empresário de Roberto Carlos, num café da Lavalle, quando soube que eles estavam depredando o Harrod´s e até a casa de Borges, na Maipu. Levaram uma surra dolorida. O goleiro do Peru, argentino naturalizado, sobreviveu a Coutinho, o que mostra o quanto o futebol é injusto          

1982, Espanha

Aos 24 anos, lamentei que já estivesse casado. Se solteiro fosse, teria dado um jeito no trabalho e escapado para Sevilha onde amigos tinham alugado um apartamento para ver a fase de grupos na cidade mais animada e mais feliz do mundo de todos os tempos. É certo também que não teria sido óbvio que conseguisse uma licença de algumas semanas na indústria em que trabalhava, sob a alegação de ver a Copa. Mas algum jeito teria dado. De qualquer maneira, estava em movimento à medida que os jogos foram se desenrolando. No primeiro, contra a Rússia, estava no Recife. Nos 4 x 1 que aplicamos na Escócia, estava no Uruguai, e já no Chile quando ganhamos da Nova Zelândia. Estava de volta a São Paulo quando ganhamos bem da Argentina e crescia a convicção de que não havia ali time para bater os galáticos de Telê Santana. Um entusiasmo crescente foi tomando conta de mim. A Itália, adversária do dia 5 de julho, vinha de péssimo retrospecto e desde 1970 eu a via como velha freguesa. A partida aconteceria no Sarrià, de Barcelona, onde o Espanyol local mandava seus jogos. Nesse dia, tínhamos muito o que fazer e decidimos instalar uma televisão grande no refeitório da Macprado, em Osasco, bem aos pés do pico do Jaraguá, na via Anhanguera. Por trás da unidade de bifocais, tínhamos enormes torres de transmissão de energia elétrica com imensos transformadores. O jogo começou. Logo no começo, Paolo Rossi marcou para os italianos. Ora, eu mesmo já vira esse filme em 1970. Ato contínuo, Sócrates foi lá e empatou. Nada de mais normal. Sem jogar nada, Rossi foi lá e fez mais um gol, antes do intervalo. Desagradável. Mas o volume de jogo era desigual e haveríamos de prevalecer. A meio caminho do segundo tempo, Falcão igualou e o empate nos favorecia. Era só segurar. Mas a 15 minutos do fim, o inverossímil Rossi marcou o terceiro. O time se desmontou e não conseguiu romper o cadeado. Agora sim, éramos campeões morais. Telê saiu aplaudido, ninguém achava o que dizer e eu fiquei o resto da tarde no refeitório. Houve um blecaute providencial e todo mundo pôde chorar. Saí da fábrica desnorteado, parei num boteco na Lapa e o silêncio era sepulcral. Dali em diante, estava claro, o futebol bem jogado jamais seria o mesmo. Era fim de festa no estádio do Sarrià. Especialmente se o anti-jogo da Itália lhe valesse a Taça, o que terminou acontecendo. Na época, morava na Vila Olímpia, onde comprara um apartamento na rua do Rocio. Cheguei meio embriagado e triste. A televisão era uma desolação. Até aquela data, nunca vivera um dia tão infeliz. De lá até as vésperas da Copa de 2018, 36 anos mais tarde, nunca voltei a viver tamanha infelicidade. Aquela tarde foi a mais catastrófica de todas e equivaleu a ser atropelado por um trator. Na virada do milênio, estando eu em Barcelona, li no “La Vanguardia” que o Sarrià sediaria naquela tarde o último jogo de sua história. Era entre Espanyol e Mallorca. Então fui ao estádio, eu que jamais o olhava quando passava por ali a caminho do hotel. Era um jogo insignificante. Cheguei mais cedo e fiquei vendo aquelas traves que mudaram para sempre o destino do futebol. Comi um sanduíche de botifarra e fui embora antes do fim. Que o destruíssem para saldar as dívidas previdenciárias do Espanyol e que se salgasse a terra. Daquele dia em diante, a ferida começou a cauterizar. Mas a cicatriz está lá. 

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