João Rego

Por do sol em Morro de São Paulo, Bahia. Visa do atracadouro.

Pôr do sol em Morro de São Paulo, Bahia. Vista do atracadouro.

 

“Estou em uma ilha, mas com a mulher que há muito descobre, às vezes com dor, os continentes perdidos em mim.(J. Rego)”

A viagem a Morro de São Paulo, ilha 30 milhas ao sul de Salvador, era um desejo antigo de Elba, minha esposa e companheira há 35 anos. O ritmo de trabalho intenso, meu e dela, nos induz como estratégia de fuga do cotidiano – ainda que temporário -, as viagens.

Levo comigo, além de bagagem reduzida, alguns livros: Cândido e o otimismo de Voltaire, Maravilhas do Conto Alemão, edição de 1958 e Empreendedorismo e Inovação de Peter Drucker, caso tenha uma recaída e não consiga me desligar do trabalho. Além disso, levo Dramine para enjoo e coragem (não muita) de aventureiro para enfrentar duas horas de mar aberto em um Catamarã com 20 pessoas.

A travessia transcorre normalmente e, apesar de algumas pessoas terem enjoado, o barco é seguro com uma tripulação treinada. Há na minha frente um grupo de seis estudantes argentinos dormindo profundamente, certamente resultado de uma farra na noite anterior, o que parece ser uma ótima alternativa ao Dramine.

A chegada ao atracadouro de Morro de São Paulo impressiona porque reproduz uma atmosfera de filme de exploradores ingleses chegando a suas colônias. Muito movimento de barcos, gente chegando, gente partindo, as bagagens sendo transportadas por negros com rudimentares carros de mão.

Há logo no fim do atracadouro um belo portal de entrada da cidade, construído há séculos, e, logo após, uma íngreme subida por onde trafegam diariamente turistas, mantimentos e materiais de construção.

Esta atmosfera se quebra quando meu chapéu Panamá é levado pelo vento e cai no mar.

– Puta que pariu!

Por sorte, um dos marinheiros nativos mergulha e consegue me devolver o chapéu. Para me trazer de volta ao presente, ouço uma daquelas terríveis músicas bate estaca que vem de um luxuoso hotel vizinho ao atracadouro. Estavam naquele resumido espaço, convivendo em “pura harmonia”, a Casa Grande e a senzala.

Ah o Brasil…

São impressionantes os vestígios da escravidão no Brasil. Traços que insistem em não se apagar: homens quase sempre negros ou pardos puxando carroças, catando lixo nas grandes cidades; aqui carregadores trabalhando como se trabalhava há exatamente há dois séculos. Faltam-lhes apenas os grilhões e o chicote, mas o sol inclemente é o mesmo, batendo na mesma pele negra.

Penso com o espírito inquieto: porque não usam burros para fazerem este serviço? Sigo qual um colonizador (constrangido e aliviado do peso das malas), andando de mãos vazias, seguido por um servo negro sem camisa, carregando nossas malas em um carro de mão ladeira acima, ladeira abaixo.

Descubro quando chego a nossa agradável pousada que o carro de mão faz parte da cultura da cidade. Alguém adoeceu, a ambulância é um carro de mão. Compras? Carro de mão. E por aí vai. Alguns dias depois, já livres destes pensamentos e curtindo os excelentes restaurantes, flanando à noite pela Rua Caminho da Praia, Elba aponta uma criança, não tinha ainda seus seis anos, mas estava feliz empurrando um pequeno carro de mão amarelo, como quem acabou de ganhar a primeira bicicleta.

Vem-me à mente os cruéis mecanismos de controle do Estado moldando o destino do sujeito em Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley….mas deixa pra lá, vim aqui foi para me divertir e não fazer pesquisa sociológica.

Penso que locais como estes, polo turístico em meio à natureza, estão fadados a um comércio predatório, um artesanato barato e passeios programados com grupos e mais grupos de turistas ávidos por algo que possa ser fotografado e postado nas redes sociais.

Chegamos à Pousada Vista Bela, deixamos a bagagens e caminhamos até a quarta praia, bem distante da cidade e com poucos hotéis na orla, quase deserta. Com a maré baixa, formam-se enormes piscinas com um banho maravilhoso.

Mergulhamos quase num ritual de purificação e pronto, estávamos reintegrados a natureza.

P.S A seguir descreverei, sem tanto sociologuês, a agradável Rua Caminho da Praia.

Outubro de 2013. Pousada Bela Vista.
Da rede na varanda com vista para o mar.

 DITOS & ESCRITOS
João Rego
joaorego.com