Quando eu vim morar no Recife, meus amigos aristocráticos foram unânimes: venha pra Casa Forte. E eu comigo: nem pensar. Depois de trinta anos em terras paulistanas banhadas apenas pelos rios/creme Tietê e Pinheiros, o que eu mais queria então como agora era uma beira de mar.
A primeira discussão urbana que acompanhei pelos jornais (naquele tempo não acompanhei pelas redes sociais – haveria?) foi sobre a reforma no calçadão da orla Pina/BoaViagem. Muitos críticos atacando os despropósitos da obra. Onde já se viu? Trocar as tradicionais pedras portuguesas por uma cerâmica qualquer (depois vim a saber pelo Dr. Malaquias Batista, que o incontestável IMIP colocou essas mesmas pedras, a cerâmica intertravada, em suas áreas externas, por motivos ecológicos). Acompanhei a obra passo a passo, atrapalhando meus roteiros de caminhada matinal.
E fui achando aquilo cada vez mais bonito. Outro desentendimento de opiniões com meus amigos. O fato consumou-se, não se falou mais nisso. Ficou um fenômeno social novo, muito de acordo com a emergência das novas classes médias urbanas. O calçadão virou uma formidável área de lazer. Não que não fosse antes. Mas não tinha as proporções que tem hoje em dia.
Essa imensa orla contínua Pina/BoaViagem/Piedade é uma bênção para o Recife. Foi mudando seu uso desde o tempo em que apenas algumas famílias judias do tempo dos holandeses ocuparam o Pina (sobrenome de uma dessas famílias); até o tempo muito depois, quando a burguesia açucareira construiu suas casas de veraneio à beira mar (cadê a Casa do Navio?); até os dias de hoje, em que o caminhar contínuo dos aterros povoou por ricos e pobres toda a imensa Boa Viagem.
No meu tempo de estudante universitária, quando éramos toda a sociedade mais magra e não tinha ainda essa moda de caminhar e correr, quando se caminhava sim, pelo simples viver, porque não se tinha carro, nesse tempo Boa Viagem era não apenas a praia a frequentar nos finais de semana, como era já uma área de lazer noturna. Vamos tomar uma água de côco em Boa Viagem? Muitas vezes uma cantada que poderia resultar em namoro.
Voltemos ao calçadão. A primeira impressão, quando ainda era possível comparar o novo com o antigo, era de que tinha ficado mais largo. Pura ilusão de ótica, pois não houve alargamento algum, mas apenas mudança do piso. Conversei na época com vários caminhantes matinais e, mesmo os críticos, concordavam com essa impressão. Por outro lado, em vez de uma faixa de cimentado pintada no meio das pedras brancas marcando a quilometragem no chão, a área caminhante passou a ser apenas um discreto detalhe no todo da bela paginação do calçadão, com suas pedras vermelha, cinza escuro, cinza claro e cor-de-burro-quando-foge.
Logo depois de pronto, alguém teve a iniciativa de fazer um novo uso no calçadão no happy hour e à noite dos finais de semana. Estacionava uma combi na área de estacionamento do lado do calçadão e vendia cerveja, queijo de qualho assado, churrasquinho e outros petiscos. O uso se expandiu rapidamente. Lucro certo para quem vendia, divertimento barato para quem frequentava. Os bancos eram usados qual cadeiras de um bar ao ar livre e, entre os bancos, no espaço mais baixo, o garçom servia os petiscos em pratos descartáveis devidamente ladeados de guardanapos, com cestos de lixo no chão. Tudo muito organizado, sem sujeira e sem música, que essa foi desde logo proibida. Era uma festa. Na informalidade, a cervejinha dos amigos, dos namorados ou da família ficava mais barata, com a serventia dada pela natureza na brisa do mar, sem preço de aluguel, sem preço de climatização. Não sei se por pressão dos moradores dos prédios, ou, mais provavelmente, dos donos das barracas de côco, essa informalidade teve curta duração.
Acabo de chegar de uma caminhada pelo calçadão ao por do sol e começo da noite desse abril de 2013, com os últimos estiados do verão e já o prenúncio das chuvas de inverno. Aos poucos, fui compassando meus passos para acompanhar o passeio. Sim, porque hoje é sábado, como diria o nosso boêmio poeta de Copacabana. Quase não se viam corredores ou caminhantes em passo rápido, como é comum durante a semana. Eram famílias inteiras passeando, pais, filhos, avós. Casais de mãos dadas. Jovens casais com carrinhos de bebês. Meninos andando de bicicleta não na faixa de ciclismo (exercício ou trabalho) e sim no calçadão, qual uma grande praça. As partidas de futebol com grandes torcidas, acomodados todos nos bancos. Os bancos. Essa foi uma grande invenção desse novo calçadão. O passeio pede descanso. Toma-se uma caipirinha, uma cerveja, uma guaraná, um salgadinho, tudo o que a barraca de côco pode oferecer além da água de côco. E os casais se beijam e se abraçam nos bancos, ao lado de meninos que correm. Fica quieto, menino danado!
Quando um equipamento urbano dá espaço para o bom lazer compartilhado por ricos e pobres.
Tereza
Gostei muito de sua crônica, tanto do estilo como da descrição convivial da orla de Boa Viagem. A mim, tampouco, as pedras portuguesas me disseram grandes coisas.
Como ciclista de longo curso, só achei estranho a sinuosidade da ciclovia que obriga manobras de 45 graus a cada 10 metros. Parece que prevaleceu a estética do arquiteto-urbanista, em detrimento do pedalar confortável por lazer ou a trabalho.
Tereza! Há quanto tempo! Fico contente de reencontrá-la do jeito que sempre a percebi, com grande sensibilidade e inteligência. Já naqueles tempos de Colégio intuia que você seria uma daquelas que não passaria pela vida ‘em brancas nuvens!’. Esse seu texto ‘delicioso'(presumo que seja – hum – ‘num palheiro’) me remeteu à infância e a adolescência, vividas nessa praia maravilhosa! Qualquer dia desembarco por aí e vou lhe procurar para um longo ‘papo’. Abraços da amiga Eliane.