Fernando Dourado

A ação homicida ocorrida na redação da Charlie Hebdo foi, na verdade, um ato de delinquência. Como tal, tem origens banais. O que não quer dizer que devamos ignorá-las. O mal e a banalidade são péssima combinação e já vimos no que resultam. É claro que ir na contracorrente do paradigma civilizacional de Samuel Huntington – moeda de troca na imprensa do mundo –, não é fácil. Conhecer a obra do professor de Harvard mudou minha percepção da História e os acontecimentos em pauta lhe dão certa razão. Até por isso, acho importante singularizar algumas determinantes culturais do mundo árabe. Assim fazendo, e incorrendo nas generalizações inerentes a esse tipo de ensaio, se pode dizer que na intersecção deste com o universo muçulmano, ocorrem alguns fenômenos que estão no contra fluxo dos ganhos civilizacionais do ocidente. Eis, portanto, um ponto de partida confiável.

Ora, na encruzilhada aludida a lealdade conta mais do que mérito. Logo, nesse microclima, as emoções serão mais importantes do que a racionalidade, e a intuição tem primazia sobre a precisão. Outro traço inequívoco sublinha que laços de sangue estão acima da cidadania, esta  vista como estranha ao oriente. Por outro lado, o tribalismo – ou pertencimento – prevalecerá sobre noções entre nós conhecidas como patrióticas. Serei patriota se for fiel a tal facção; não o sendo, estarei contra meu país. Daí a adoração aos líderes pelo que representam como pessoas, e não pela plataforma. Nesse mundo, a retórica é divinizada. Aplaude-se, ovaciona-se, carrega-se o chefe em triunfo; lhe exigir comprovação ou verificação factual do discurso é  considerado grosseiro e desrespeitoso. O nepotismo é de regra e o profissionalismo só comporá a fachada. Como não poderia ser diferente, o espirito de clã conta mais do que o indivíduo – obrigado a se alinhar para sobreviver em várias dimensões da vida: amorosa,  ideológica e econômica. Isso dito, é bom ressaltar que essas determinantes permeiam como uma nuvem as populações muçulmanas – excluídas ou não – do cenário europeu. Minha tese: a história dos irmãos Kouachi obedece ao padrão sócio carcerário vigente em qualquer
país da América Latina. Portanto, a balança analítica se inclina mais para a experiência de Dr. Drauzio do que para os cenários de Huntington.

Isso dito, afirmar que estamos tratando de fanáticos religiosos é ver a árvore e ignorar a floresta. Pois não há no histórico deles, nem no de Amedy Coulibaly – o tresloucado do supermercado “kosher” de Vincennes –, muito que os singularize em meio a dezenas de milhares de suburbanos. É claro, até o 7 de janeiro. Órfãos desde cedo, imagino, essa gente geralmente conheceu a mãe, mas não teve pai. Elas, por certo, tentaram compensar a precariedade da vida cinza com proteção excessiva. Na efervescência do consumismo suburbano, não puderam lhes dar limites. Já não era sofrer muito não ter pai? Daí a que cometam pequenos delitos, é um passo curto; aos quais elas fazem vista grossa, coitadas. A escola, pobre dela, lá como aqui, tentará enquadrar o adolescente em franca mutação. Ora, mesmerizados pela satisfação imediata, os rapazes a abandonam e se dirão perseguidos, senão humilhados. As mães até acreditarão. Um dia, eles alegam que arranjaram trabalho no Carrefour, mas passam o tempo na companhia de assemelhados em exercícios de auto piedade. Logo formam gangues, pulam catracas de metrô, batem carteiras e surrupiam bijuterias para presentear meninas que, altivas, os repudiarão. Até que vem o primeiro  indiciamento. Com ficha na polícia, eles abraçam teorias conspiratórias. Se a revolta e a impotência preserva do ódio jogadores de futebol e astros da música, o “establishment” é tido por cruel. É feito pelos brancos, e para benefício deles e dos judeus.

Uma ação malsucedida os levará, afinal, à cadeia onde redes de apoio se formarão. Confrontados com a miséria material e espiritual de uma vida sem amanhã – depois de ter traficado droga ou sido garoto de programa – eles se identificam pelo que não são. Não são nem famosos, nem ricos, nem cultos, nem vitoriosos. Um líder, então, aparecerá, como é de regra no reino animal. Então lhes dirá que estão presos porque são franceses de segunda classe. Que seriam prósperos se seus pais não tivessem saído dos países de origem onde eram felizes. Precisando acreditar numa patranha que lhes dê um horizonte, aplaudem a nova voz. Afinal, são egressos da civilização do Livro – logo, amam a palavra. Para atenuar os rigores da cadeia, uma hora se convertem ao Islã em busca de proteção contra a dura lei carcerária. Esta, entre bandidos, se cumpre. Sendo a religião, contudo, de proselitismo, eles alardeiam Alá para tudo. Ora, doravante o que lhes soar atentatório ao credo ferirá a recém-adquirida derme de brios. Analfabetos na tradição corânica, brandirão nas ruas, uma vez em liberdade, a pregação da cadeia – a única escola de onde não puderam fugir. Criou-se um perigoso norte.

Ora, a junção de dois fundamentalismos balizadores – o que nem a mãe nem o Estado conseguiram dar – fará de cada um fanático no espaço público. Quantas vezes não vi, em 42 anos visitando Paris, um deles se levantar no metrô e começar a distribuir ordens como se estivesse de volta à cela? Aos gritos, de olhos injetados, mandará jovens ceder lugar aos mais velhos. Onde já se viu? Tentará imitar o macho-alfa em quem se agarrou como náufrago no cárcere. Moralista, alterado, não raro drogado, vai querer provar à vintena de nacionalidades espremidas no vagão, que é educado, justo, protetor dos fracos e sensível. Para horror das mães, afagará crianças e, empático, dirá que também é pai. Transidos de medo, os passageiros aguardam a próxima parada. Se alguém o encara, recebe uma descompostura. Em qualquer estação próxima à Porte de Clignancourt, essa conduta é de lei. Basta ir lá. Cada dia mais histriônico, ele se vê agraciado com encontros com irmãos. O que espera? Uma chance de se mostrar valioso, quem sabe de rifle na mão. Vizinhos de prédio nada percebem, salvo a observância a códigos melífluos: “bonjour”, “merci”, “excusez-moi” e “au revoir”. Em suma, a  repetição mecânica de salamaleques que os franceses confundem com “gentileza” – um clichê aberrante por lá.

Histérico e belicoso, ele já está no radar das forças de segurança. Mas caiu também no dos aliciadores de religiosos de ofício. Líderes querem seguidores. Ora, por que não o faria a religião cujo símbolo é justamente a espada? Em pouco tempo, ele receberá de presente uma  viagem de treinamento em algum valhacouto iemenita de onde sonha em voltar efetivado. De resto, como qualquer estagiário de multinacional. Sem que sua existência mofina tenha sequer sido notada pelas grifes do terrorismo, o pobre diabo se arvorará de ligado ao Estado Islâmico ou a Al-Qaeda. Da mesma forma que um adolescente se diz barcelonista.

Alguém duvida? Pois a hora chegará em que ele mostrará o quanto vale a uma audiência maior. Então, algo pretextará a deflagração do grande dia: falta de dinheiro, rejeição, droga ou tudo junto. Terrorista? Que nada. Estes são os modelos inspiradores. Ele é só a quintessência do fracasso. Assim como a pobreza não é fábrica de homicidas – o que seria da Índia? –, a mesquita, onde ele só aparece quando não bebeu, não é criadouro de suicidas. E assim chegamos ao Charlie Hebdo. Ironicamente, semanas depois de a França ganhar dois prêmios Nobel, e consagrar Thomas Piketty, um economista original.

O resto é conhecido. A televisão mostra em tempo real quaisquer ações espetaculares. Da tomada de reféns num café australiano ao resgate de uma fuselagem do fundo do mar. Quanto mais cinematográfico, melhor. Só assim as pessoas saem do casulo dos celulares onde carregam a vida. O criminoso conta com isso. Na dúvida, posta falas bombásticas nas redes. Ora, quando a ação bárbara ocorre numa cidade-cenário, mais ressoarão os louvores ao Profeta. Seriam os irmãos Kouachi a ponta de lança da Jihad? Não; são, desde sempre, caso de polícia. Um porém: não se pode negar as raízes beligerantes do Islã. A sura 8.60 do Alcorão,  diz: “Preparai contra eles toda a força, toda a cavalaria a fim de aterrorizar o inimigo de Alá, o vosso”. Na 8.39, ela reforça a mensagem: “E combatei até que não haja mais ´fitna`(discordância fundada na não-crença) e toda a religião no mundo seja a de Alá”. O  certo é que a “laïcité” – secularismo – francesa, o credo da Charlie Hebdo, desafia a compreensão até de muçulmanos brandos pela permissão implícita para que se lhe ridicularizem os símbolos de fé. Pior: proíbe-se o humorista Dieudonné de fazer o mesmo com os judeus. Ora, o Islã consagra Deus, governo, segurança e estado – nessa ordem, porém  amalgamada numa só unidade. Ao perceber dois pesos e duas medidas, vem o reforço à desconfiança de que eles, efetivamente, são o lado perdedor. O ocidente e a França os condena à marginalidade, concluem até os maometanos de boa-fé.

É gritante que a Europa não pode assistir a essa degradação de braços cruzados. Se o suplício dos cartunistas uniu a opinião pública por um tempo, a sanha dos assassinos nos passa uma amarga sensação de impotência. A França tudo fez nos anos 80 para incutir noções de planejamento familiar, maternidade responsável e contracepção às jovens da África e do Magreb. Mas as bombas demográficas se assemelham a certas doenças. Quando eclodem, é porque já se perdeu a janela de tratamento e só restará a contagem regressiva. Mas como se dá com as enfermidades, também se pode viver com elas. O resto será conflito contínuo.

***