Abelardo e a mãe tinham ido ao aeroporto de Guarulhos para deixar um parente. Já estavam quase na saída do terminal quando uma voz chamou-a pelo nome: “Diva, será que é você?”. O tom suplicante e a nota prolongada traíam a origem do sotaque e, quando ele se virou, as duas já se fundiam num abraço. “Mulher, mas há quanto tempo!” Sim, ela também era pernambucana, vivia em São Paulo há décadas e se encaminhava para o ponto de ônibus com o filho. Vendo a genuína alegria da mãe, Abelardo, olho treinado para fazer o bem, ofereceu uma carona até o Butantã.
“É claro, faço questão. E mesmo que não ficasse no caminho, iríamos até lá do mesmo jeito”.
“Benza-o Deus, Diva. É o pai todo quando tinha essa idade. Até no jeito de falar”.
Cumprimentando o rapaz meio sisudo – de resto, tão surpreso quanto ele próprio com a emoção das amigas -, disse:
“Na ponte Eusébio Matoso, você me mostra como chegar à sua casa. Até lá, eu me garanto”.
“Afirmativo”.
Abelardo acomodou-as no banco de trás e Hélio – este era seu nome – sentou ao lado, no assento do acompanhante. Virando a chave para aquecer o interior do carro, ele procurava o ticket de saída. Fazia bastante frio e garoava naquele dia dos anos 90, às vésperas de uma Copa do Mundo de boa lembrança.
“Gosta de futebol, Hélio? Está animado? Esse tetra vai sair, afinal?”
“Detesto futebol. Mãe assiste na sala com a vizinha. Mas eu fico no quarto. No que dependesse de mim, o Brasil perdia.”
Sentindo que precisava tatear melhor o terreno, Abelardo contemporizou.
“É isso aí. O problema é que quando toca o hino nacional, a gente muda de ideia”.
“Eu, não. Por mim, tocar o hino seria proibido em futebol. Só seria liberado em ocasiões cívicas de verdade. E não de brincadeira”.
Pelo retrovisor, Abelardo percebeu o olhar aflito de D. Mercês:
“Pois eu, não. Até camisa do Brasil eu visto com minha amiga. Mas esse aqui não sai do quarto nem na hora do gol”, disse a mãe a título de desculpas.
Foi então que Hélio modulou a voz que reverberou ao lado:
“Tancagem a três quartos, óleo no azul, autonomia assegurada, temperatura externa estável e interna em elevação. Acionar limpador de vidro e deixá-lo no intermitente. Start de motor e pull back”.
Olhando à direita, Abelardo sorriu com a desconcertante mudança de atitude daquele homem que lhe pareceu agora mais velho do que julgara. De seco e taciturno, eis que brincava ali, fazendo do acendedor uma espécie de microfone e dando instruções.
“DFT zero oito uno oito taxiando para take off. Confirmar vento e visibilidade”.
Abelardo gostou mais dele assim; sempre adorou os irreverentes. Hélio, contudo, se mantinha muito sério e regulava controles invisíveis num painel imaginário no quebra-sol, ereto na poltrona e de cinto afivelado. Chegando à guarita, lá voltou ele à carga, sempre falando ao microfone improvisado:
“Confirmo Delta Fox Tango zero oito uno oito às 13:42 locais na pista quatorze. Vento lateral não-impeditivo, profundidade de dois mil metros. Começar a aceleração.”
Ao volante de uma Quantum – cuja placa o carona num átimo já memorizara -, Abelardo se sentiu na cabine do Concorde, e com um co-piloto à altura. Quando ia fazer a pergunta óbvia, a mãe lhe beliscou o cotovelo. Isso significava, desde criança, “fique quieto”. Era código válido para todas as ocasiões de tensão. De um arrobo de temperamento do pai a uma risada num enterro. Contenção. Atenção. Ouça e não fale – terreno minado.
No acesso à estrada, novas instruções:
“Frequência uno dois uno informa navegação fluída no corredor da Marginal Tietê. Novo boletim sobre a cabeceira do Pinheiros no ponto remoto Gaviões a oito milhas, na altura da Vila Maria. Manter coordenadas de referência e angular em duas mil jardas a SW 45 graus.”
Foi então que Abelardo entrou na dança:
“45 graus. Executado”.
“Copiado. Manter proa de Sudoeste. Regular botão “cruise” para 40 milhas até paralela da Vila Leopoldina. Trajeto estimado em 38 minutos”.
“Regulado em 4-0”.
“Confirmo Delta Fox Tango zero oito uno oito em automático a 45 milhas.”
E assim tiveram uns minutos de paz – próprios das condições de cruzeiro – enquanto Hélio, satisfeito, curtia a rota, dialogava com tripulantes de outros aviões falando ao acendedor e, a intervalos, reproduzia até o escarro da estática. No parque São Jorge, cruzou com voos internacionais, ocorrência comum na área. A verdade é que não se apequenou e desejou bom voo aos colegas de cockpit do Air France que voava para a cidade-luz:
“Here DFT zero-eight-one-eight bound for South-West whithin expanded central area. We confirm foggy conditions and low clouds in GRU neighborhood and outside temperature of zero-nine Celsius. Have a safe flight, AF four-nine-four”.
Atrás, na ala feminina daquele voo meio talibã, a conversa era sobre os anos da Guerra na pequena cidade. A amiga Mercês rememorou as filhas do sorveteiro japonês – as internas Kyoko e Akiko – que, coitado, tanto sofreu.
“Mercês, mas que memória. Nunca que eu lembrasse delas. Ele morreu, não foi?”
“E de que forma, não é, Diva? Eu te pergunto: era para menos? O homem só queria criar as filhas, tocar a sorveteria no Recife, tão bem frequentada. Era tão gentil. Mas a pressão foi terrível”.
“Em Recife, a coisa ficou feia. Papai contava que jogaram até um piano de cauda de um sobrado da rua Nova. Espatifou-se no chão. Dizem que o professor, um austríaco, chorava feito criança”.
“Quem se safou foi o comerciante italiano, minha filha. Esperto, disse aos arruaceiros que era russo, o sobrenome da família. Portanto, aliado. Confundiu a cabeça dos vândalos e salvou por pouco o estoque da loja”.
Por uma vez, ele se meteu na conversa das passageiras:
“O mundo deve tudo à RAF. Mas a Luftwaffe tinha os aviões mais bonitos. Os japoneses não valiam nada”, decretou.
Na altura da Lapa, por onde transitaram, segundo Hélio, às 18:03 GMT, a tensão na cabine subiu como é próprio do pouso. Por fim, pararam diante de uma casinha numa rua despojada do Caxingui:
“Check de chegada: acionar breque de mão. Travar câmbio em primeira. Zerar calefação. Cortar motor. Portas em manual”.
Abelardo, então, virou a chave e todos saíram, ou melhor, desembarcaram. Estendendo a mão ao piloto, Hélio se esmerou na fidalguia comum entre aeronautas:
“Bom trabalho, Comandante. Espero que voltemos a operar juntos.”
“O prazer foi meu. Qualquer hora dessas iremos ao Recife.”
“É só convocar”, rebateu com um brilho nos olhos.
De novo a sós com a mãe, Abelardo suspirou:
“Que fria, hein? Ele poderia nos ter sequestrado para Cuba. Quem é ele, mamãe? De onde saiu essa figura?”
“Chega a ser seu parente, meu filho, quase um primo”, suspirou a velha Diva.
E então descreveu uma genealogia rica em detalhes. Em algum ponto, sim, havia um parentesco.
*
Vinte anos mais tarde, agora sozinho e percorrendo de táxi o mesmo trajeto, Abelardo rememorou o dia tão especial em que foi piloto. E, apesar das saudades e alguma amargura, não reprimiu um sorriso. Chegado aos sessenta anos, morando em Belo Horizonte, contava com humor para quem quisesse ouvir o quanto a família era pródiga em excêntricos. E em bons psicanalistas, o que deve integrar o pacote. Mais de um já lhe dissera que não fosse o caldo de cultura dos parentes, teria estudado outra coisa.
“Foi determinante, bicho. Era um laboratório vivo. No meio do curso de medicina, a residência já estava correndo sem que eu soubesse. E isso, desde a infância. Cardiologia coisa nenhuma. Era psiquiatria ou nada”, dizia um primo que lhe era mais próximo.
Quando menino, sempre que um conhecido ou familiar era internado, o pai desdramatizava a situação com uma brincadeira:
“Ah, está em Buenos Aires. Não se sabe ainda quando volta”.
Ainda hoje, Abelardo associava a capital portenha ao repouso dos atormentados. Naquele caso distante que vivera, o aeronauta fora cadete da FAB, mas o psicotécnico lhe ceifara a carreira. O golpe fora duro e a exclusão o machucou em definitivo. E isso já datava de trinta anos.
“Um complexado, virou piloto recalcado “, segundo lhe disse a mãe quando ficaram a sós a caminho das Perdizes, onde então morava. A bonita Diva, de saudosa memória, adorava esses dois adjetivos e, apesar do vasto vocabulário, os usava como sinônimos.
No fundo, talvez fossem só figuras originais e, não raro, muito ternas, pensou Abelardo. Os episódios eram vários: tinha o tio que fugira do hospital com medo de operar uma úlcera, e desfilara pela Conde da Boa Vista de roupão e sem cueca. Outro parente insistia em comer tareco de talher para mostrar que tinha “finesse”. O biscoito voava do prato e a bisavó se desesperava. Mais tarde, ele viraria halterofilista com o único intuito de surrar um cunhado que o tratara mal. Outro fizera uma viagem ao sul na época da “Jovem Guarda”. Pelo resto de seus dias, falava com a voz anasalada de Roberto Carlos e forçava o sotaque tijucano. Foi apelidado de “É uma brasa”- slogan datado e caro ao ídolo de uma vida inteira.
O motorista pediu indicações, trazendo Abelardo de volta à terra:
“Pegamos a Pacaembu ou vamos pela Nove de Julho?”
“Tanto faz, chefe. Hoje estou com tempo. O que você decidir está bem”.
“Eu prefiro perguntar ao passageiro. Mas confusão mesmo só na Vila Madalena”.
“Imagino o sufoco: tanta gente naquelas ruas estreitas”.
“O senhor é daqui?”
“Um pouco, sim. Mas moro em Minas Gerais. Volto amanhã mesmo para ver o jogo”.
“Será que a gente passa dos alemães? Sei não, viu”.
“Tudo é possível, amigo. Já vi muita coisa nessa vida. O problema é que sem Neymar, ficamos sem referência nenhuma. Mas vai ser um jogo aberto”.
Como se chamava mesmo a prima da mãe que criava oitenta gatos em Tejipió? E será que ainda vivia o primo hipocondríaco que voltou de Lausanne porque viu um pássaro morto no jardim do hotel – o que poderia ser um perigoso indício de vazamento de radioatividade? Dizem que uma vez tentara inverter a posição dos testículos. Passar o da esquerda para a direita, e vice-versa. Não funcionou.
Na sua geração, um cunhado já falecido fazia uso diuturno da expressão “fluxo de caixa”, aprendida nos bancos da faculdade. Conquanto seja um cronograma de entrada e saída de dinheiro, a sonoridade das palavras lhe resignificou a vida. Ficou conhecido como “cash-flow” e assim foi tratado a vida toda. Uma vez fizera uma prelação para o vendedor de coco a respeito de seu tema único e quase se deu mal. O homem levou a mão ao cabo da peixeira, temendo a intenção da prosa torta. “Cash-flow” quase foi tomado por um assaltante, o pobre.
Mas quem Abelardo mais temia mesmo era a tia-avó octogenária que passeava de sombrinha branca em Lajedo e tomava talagadas de cachaça na mercearia. O marido, delegado, entrava em casa com tato de felino, mas não escapava de surras ocasionais e descomposturas cruéis.
Chegando ao flat no coração dos Jardins, ele se despediu e olhou o relógio. Estava no horário e havia tempo bastante até o jantar onde era aguardado. Já no apartamento, Abelardo ligou maquinalmente a televisão e lhe ocorreu o fascinante que era fugir da linha seriada e ter tantas referências fora da curva em torno de si. Dentro de alguns limites, será o patrimônio imaterial da família. Isso porque elas sobreviverão à soma de todos os bens físicos. Será que o aviador ainda vivia? Em que nuvem se perdera Hélio, o brigadeiro da terra?
Resignado, Abelardo se decidiu por um bom banho. A cidade estava tranquila para um país que sediava uma Copa. Que desespero fora a partida contra o Chile, e depois contra a Colômbia. Dalí o time só podia melhorar, esperava. No embalo, se serviu de um uísque e tentou sorrir quando se viu no espelho.
Pensando bem, olhando as têmporas grisalhas, a calva acentuada e os olhos cor de esmeralda, agora é que tinha uma aura de comandante. Mas para isso, já era tarde. Até a garoa de São Paulo sumira.
A princípio, estranhamos uma possível ausência de ” moral da estória ” . O inaudito das falas se mantém até o final. Muito interessante o modo como o autor leva o non sense dos personagens a transbordar o próprio texto , retirando-lhe o lugar comum do significado das curtas obras ficcionais. Não há que exigirmos sentido e mensagem clara quando a arte se mostrou justamente em delegar aos personagens a mensagem do texto. Sutil. Adorei ao me sentir convocado a exercitar a capacidade de pensar pelo inverso da razão. Aguardo o próximo!
Lázaro
Muito bom reler seu comentário às vésperas de mais um encontro para confabularmos sobre literatura, meu amigo. Ou, pelo menos, para falarmos do que pouco que consigo fazer nesse terreno. Dois anos e quatro meses depois, a verdade do que você diz continua me escapando. Ou, pelo menos, o domínio da técnica como tal. Mas talvez uma hora chegue lá.
Abraço,
Fernando
Adorei as loucuras da família, muito interessantes. Fiquei aqui pensando onde o escritor foi buscar as referências….
Adoro ler contos. A escrita foi muito bem elaborada e os personagens são pitorescos. Durante a leitura, procurei imaginar a fisionomia de cada um dos envolvidos nas conversas e por todos os lugares que passaram. Até o próximo
intrigante como a ficçao se rende a “realidade” familiar…
Convivi um pouco com o Fernando por volta da virada do século e também li seus livros sobre comportamento em culturas diferentes. Minha curiosidade era sobre sua vida nômade envolvida em negócios internacionais, mas ele, trazia o assunto sempre para o ser humano e seus tipos.Mais uma vez vi isso nesta escrita. Fernando gosta de gente.
Prezado Ricardo,
Que alegria vê-lo nesse espaço. Para quem não sabe, Ricardo é o maior torcedor da Lusa em São Paulo e mais de uma vez foi algoz do glorioso Náutico tanto nos Aflitos quanto no Canindé. Tem os melhores legumes e frutas da rua Veiga Filho ( O Pomar) e conta, entre seus clientes, com pessoas ilustres que simplesmente o adoram. De tanto ouvir boas histórias, escreveu dois anos atrás um livro delicioso sobre casos vividos e ouvidos lá dentro. Efetivamente, convivemos bastante numa época que reputo como uma das melhores de minha vida. Continuar privando de sua amizade é um privilégio de que tenho orgulho. E que assim permaneçamos pelos próximos quinze anos.
Um abraço e lembranças à família,
Fernando Dourado