Fernando Dourado

“Antes me preocupava com a vida da palavra; agora, com a morte do homem”.

Evandro Affonso Ferreira, um escritor.

Evandro Affonso Ferreira, um escritor.

EVANDRO AFFONSO FERREIRA, bom mineiro de Araxá e morador de São Paulo há mais de meio-século, gosta de escrever livros nos cafés da cidade gigante. Para tanto, acorda cedo, toma os remédios, ajeita o chapéu Borsalino e sai de casa para explorar o universo rico dos caminhantes. Quando não tem compromisso com a literatura – oficina, entrevista, debate ou reunião com a editora -, ele vai vivê-la. Ou seja, é ela ou ela, sem concessão a prazeres tépidos, sequer cinema ou teatro. Claro, abrirá uma exceção para um exame médico, mas isso só rara vez. Caminha, portanto, pela saúde mas sempre a serviço, registrando cenas urbanas na retina vacinada e curiosa. Desde que vendeu o Avalovara, o sebo-santuário dos escritores de alta gama, ele se integrou à paisagem da cidade. Ganhou mobilidade e, a passo apertado, é, a seu modo, veloz no corpo de maratonista etíope. Até por isso, é difícil acompanhá-lo por cinco minutos na avenida Paulista. Nesse percurso, é certo que alguém o abordará para cumprimentos – de jovens imberbes a senhorinhas de cabelo azulado. Pode ser uma aluna do Clube Paulistano. Ou, não raro, uma fã das casas onde brilha: a das Rosas ou a do Saber. De vez em quando, Evandro trabalha os três turnos do dia. Onde, portanto, o romantismo do ofício? Quem disse que escritor está ao abrigo das contas?

Como é comum com os mestres, ele trata de minimizar os pequenos surtos de vaidade e segue em frente. Ficará sim lisonjeado com um elogio ao texto, sua marca. Nessas horas, é doce e modesto. Mas essa via tem mão dupla. Isso porque se sentirá enciumado se alguém exacerbar nos rapapés a outro escritor – sobretudo, se for vivo e brasileiro. Então ativará um comando demolidor, de resto comum aos artistas de verdade. Será que esse tal gaúcho é isso tudo mesmo? Então, pelo visto, o cara é páreo para Hermann Broch? – instigará, sardônico. Mas a mordacidade terá vida curta. Quer vê-lo, pois, esquecer a vida e se concentrar numa cena como o cientista no microscópio? Pois bem, basta que veja um desvalido; um marginal, enfim, um homem em andrajos que vague pelas avenidas espetadas de prédios. Melhor ainda será se o rebotalho estiver falando só; gesticulando e exalando a fedentina dos desorbitados. Diante disso, ele se fará as perguntas cardeais: como a exclusão social começou? Foi voluntária ou compulsória? O que fez com que aquela alma “virasse a chave” tão radicalmente? Teria sido um amor não correspondido? Assistira a alguma chacina quando criança? Ou teria ele sido sempre desse jeito? Nessa hora, abrirá uma pasta na virtualidade da mente inventiva. Sentado, a reabrirá.

Então escreverá a respeito da cena diante de uma xícara espumante. A situação terá sido só pretexto. O desajustado catalizará, na verdade, um encontro cúmplice das palavras e, como faz o gato da caricatura que brinca com o novelo de lã da vovó, ele também se divertirá com elas. Por mais que diga que o destino delas tenha perdido primazia diante da finitude humana. De qualquer sorte, o foco jamais estará no enredo. Narrativa -linear ou não -, está fora do propósito de um escritor sério. O mendigo, coitado, entrou ali de gaiato e, como já está acostumado, logo foi esquecido pelo artista que dele tomou emprestados só os fiapos emaranhados na carapinha e o hálito de quem revolve o lixo das lanchonetes. No mundo de Evandro, os elementos só ganham sentido se sente que coleta material para a literatura. Da degradação à soberba, dos estranhos aos mais próximos, tudo e todos podem vir a aterrissar um dia nas densas páginas de ficção verdadeira que burila, cinzela e, sábio, deixa decantar. Vá entender o mecanismo. Atentos, prestamos atenção aos sinais menos evidentes na esperança de lhe captar a centelha, o momento seminal. Então, fulminante, poderá se flagelar como um penitente maometano. E dirá a uma audiência perplexa que ele próprio é um nada; um impostor – diante da grandeza de Bruno Schulz. E lerá um parágrafo do mestre com a altivez de quem discursa para milhares.

O mais impressionante é que ele sai de casa cedo e volta tarde. Forte e resistente, lembra também Ho Chi Min – o homem pequenino de enorme estatura que bateu as grandes armadas. No caso dele, os exércitos que o atormentam são os da consagração da mediocridade. Evandro caminha, conversa e trabalha além da média. Ele mesmo ironiza a dinâmica que se instaurou, dando mostra de uma picardia bem sua: “Deixa eu te contar uma. Perguntaram ao Frei Betto quando é que ele reza. O mesmo vale pra mim: Evandro, quando você escreve?” O que significa, na verdade, que trabalha o dia todo. Isso porque mesmo quando está em casa, ele continua processando os fatos do dia – política e costumes – para, aberta a brecha, lhes dar forma literária. Tal como disse Ariano Suassuna, citado dia desses por Raimundo Carreiro, ele também acha que literatura é erudição e metáfora. Você concorda com isso?, perguntamos enquanto tomávamos um expresso. Isso não é hermetismo? Não, não. Literatura de verdade é isso mesmo. Carreiro – que admira e chama de Carreirinho (adora os diminutivos) – tem razão. O resto é o que acoima de jornalismo, um ofício menor que associa a todo e qualquer texto que possa obliterar a literatura. Subjugar a palavra não é com ele. Submetê-la às peias da clareza e concisão, é tarefa para o andar de baixo.

Certo é que muitos se sentem perdidos e fascinados pela figura quixotesca do escritor. Como pode literatura ser erudição e metáfora? E o pobre leitor? Que se dane, diz ele. Que se dane, repete – escandindo as sílabas, exaltado. Nessas horas, a mesa fica preocupada. Um amigo, do tipo irmão mais novo, desanuviará o clima e puxará um chiste. Mas não haverá força humana capaz de refreá-lo sob provocação. O escritor que se preza tem que se contentar com cinquenta leitores…e olhe lá. Talvez vinte, exagera. Ele mesmo tem dez. Mas é gente que já leu caminhões de livros e traduziu do grego, estoniano e catalão. Nessas horas, é quase inevitável que evoque José Paulo Paes, o padrinho literário. No ciclo íntimo do escritor, não há tolerância para os que venderam a alma ao diabo. Que vão viver na Europa e nos deixem em paz, parece dizer. Hora de baixar a temperatura. De comentar a participação dos escritores brasileiros em Paris, por exemplo. Por que eles esperam chegar lá para só então reclamar das diárias? Não te chamaram dessa vez, Evandro? Chamaram, mas eu recusei, diz em tom de galhofa. Afinal, mineiro que é mineiro não gosta de avião. E ri com vontade, os olhinhos varrendo o ambiente. No fundo, os mais próximos detectarão o desprezo pelo “establishment”, pelo oportunismo do “meio” que ama o poder pelo poder. Qualquer poder.

Evandro Affonso escreve nos cafés, mas também nas boas padarias. Gosta de ambientes burgueses onde se toma café-com-leite com bolo de cenoura. Por ele, as velhas leiterias voltariam com força total. Nada de rabo-de-galo com torresmo. Uísque, muito menos. De ambos quer distância. Dia desses escutou sem querer uma conversa sinistra de empreiteiros. Rapidinho, levantou acampamento. Nos semáforos da vida contemporânea, Minas dará sempre o grito de alerta contra as charnecas temerárias, as verdades empoçadas, as fissuras da República. Mudou de endereço e foi se aboletar em algum dos escritórios virtuais que mantém numa faixa que vai de Higienópolis aos Jardins, passando por Cerqueira César e Bela Vista. Faz anotações em grandes cadernos que traz na bolsa a tiracolo, vestígio da década de 70. Tem endereço para conversar, para escrever e para observar. Em nenhum momento tem saudades dos tempos de bancário e publicitário. Associa-os a anos malucos em que era um farrista contumaz. Junto dele, portanto, melhor não beber. Não suportaria ficar ao lado de um homem embriagado nem que fosse por minutos. Já bebeu a cota, gosta de lembrar. Quem testemunha esses desabafos, diria que ele se refere ao Evandro de então como se falasse de uma entidade endiabrada. De um histriônico que jogava a vida pela janela.

Como seria possível defini-lo, além desse borrão atabalhoado, ditado mais pelo sentimento do que pela razão? Só por tentativa e erro. Franciscano, salvo na língua. Asceta, sem reparos. Bairrista em certa medida, abre lugar no pódio para Pernambuco, ao lado de Minas Gerais. No mais, é quase monástico, quando não está namorando. Mas, ao mesmo tempo, é homem difícil de agradar. Os amigos pensam em lhe dar um presente pelos 70 anos que completa em 16 de abril. Ora, ele mesmo diz que tem tudo o que precisa. Até um computador novo em folha. Se tem, não o usa. Pois abomina redes sociais e talvez nunca tenha tido um endereço eletrônico. É assim que gosta da vida. Quem tiver que achá-lo, pensa ele, o achará. E tem razão. A escala do ver e do ser visto é minimalista. À mesa, come frugalmente. Só o bastante para escrever e por isso que o faz tão bem. Literatura não combina com saciedade e conforto, diz o amigo Pécora – dos poucos que venera, o Alcirzinho. Quer ver? Uns anos atrás, se apaixonou por uma pernambucana e, ato contínuo, saiu de casa. Achou um despropósito continuar vivendo com a família se o coração palpitava àquela altura por outra. Nessa idade, Evandro? Para ele, encavalado entre a cabeça do PSD e a alma da UDN – são milhões os mineiros que vivem nesse microclima -, não há idade para ser honesto.

No entender dos mais próximos, sem duvidar do torvelinho arrebatador da paixão, o amor repentino lhe deu um pretexto bem construído para ir até as fronteiras da literatura e, mirando pelo binóculo, inspecionar a fronteira da inspiração. Pois não é que gostou do que viu? Voltou à caserna, se despediu dos mais próximos, vestiu o uniforme de campanha e entrou no corpo a corpo das baionetas. Conseguiu transformar uma vida organizada numa rotina atormentada, cheia de viagens ao Rio. Até no acostamento da Dutra, já saltou no breu da noite. Também fez valer cada trajeto de ônibus até o endereço provisório paulistano. Isso porque arranchou-se por meses na zona sul da cidade, quando a sua paisagem de predileção é a zona oeste ou a central. Odiou porque ficou na contramão dos afetos. Ademais, se tratava de um bairro de emergentes. Evandro gosta de pobres e ricos. E até da classe média. Mas tem horror a emergentes e camadas aspiracionais. Foi, contudo, hipotecado a esse momento de desconforto que escreveu os dois últimos livros. E até um Jabuti saiu daí. Coisa de obstinado. Apesar da altivez comprovada, ainda se acha um medroso. Imagine se não fosse. Na verdade, tem amor à vida e, na solidão do quarto, se arrepende quando acha que blasfemou. Falta pouco, mas ainda falta, para concluir um perfil que, embora incompleto, se pretende honesto para com o profissional da escrita e criação.

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NO FUNDO, ama fazer as pessoas rir e deve seus primórdios literários ao humor. Rir de si próprio; da guilda dos escrevinhadores; dos livreiros; dos comerciantes bissextos e dos leitores, integra todo um ciclo de predileções que não se esgota; mesmo porque Evandro tem repertório imenso. Mas a expressão do rosto se contorcerá quando, por dever profissional, tiver que ler um parágrafo presunçoso e enfatuado. Teme esse momento mais do que um vírus tenebroso ou uma super bactéria. Nesse diapasão de amor às letras, não passa um dia sem entrar em livrarias. Em todas é acolhido com alegria pelos bons vendedores. E com inquietação pelos amadores. Lá vem ele. Se a marca da vida é o desprendimento, quando entra nas lojas parecerá um gladiador pisando na arena à espera das feras. Entre as lombadas, é tão aplicado quanto um estagiário de cervejaria que, sonhando em ser efetivado pela empresa e ter acesso ao programa de bônus, revira a arrumação das gôndolas e, obsessivamente, coloca os rótulos de bebida de sua devoção no ângulo de visão de um homem de estatura média. É a vida que está em jogo; o casamento; o suor do pai; o sorriso da avó. O mesmo fará Evandro com seus livros. Quem é mais ambicioso? O rapaz que pensa em comprar um carro italiano ou nosso amigo que, sem nada querer, não descarta o Nobel?

Assim, os livros de Evandro estão sempre expostos nas melhores prateleiras, mas ele não esconderá um desconforto patológico se o colocarem ao lado de best-sellers. Reclamará junto ao vendedor com manha e autoridade. Uma combinação, de resto, bem a gosto da malandragem urbana com o toque mineiro. Quase sempre, será ouvido: “Isso é lá vizinho que você me dê? O cara já é bonito, rico e famoso. Sequer escritor é; é músico. Escreve por diletantismo e esnoba os prêmios que ganha. E você ainda me coloca ao lado dele? E eu que pensava que você era meu amigo”. Se o vendedor não for sensível ao apelo, ele não hesitará em fazer justiça com as próprias mãos. Ou com a cumplicidade de amigos-discípulos. Como um comando bem treinado na guerrilha urbana, um vai distrair o vendedor altivo; o outro encobrirá com o corpanzil as câmaras do circuito interno e um terceiro, rápido e valente, mudará a posição da pilha de “Os piores dias de minha vida foram todos”. Já não terá estorvos na vizinhança. Assim ele poderá passar a noite – pelo menos aquela – ao lado de Kafka, Kazantzakis, Homero ou Cornélio Penna. Este, ele venera. Precisou de oitenta páginas para descrever o enterro de uma menina. O anti-jornalista, em suma. Nessas horas, fica taciturno. Quem conhece Cornélio Penna nos dias de hoje?, pergunta desolado.

Como mineiro profissional, adora a sabedoria política das figuras exponenciais das Geraes. Em pleno 2015, enquanto o Brasil naufraga, aderna ou chafurda – como não usar metáforas falando dele?-, Evandro finge não entender as vicissitudes da conjuntura e faz perguntas marotas que, apesar de inteligentes, desnudam um certo maniqueísmo de geração. Adubar uma visão reducionista é uma forma de mostrar desdém por tudo que não é arte: fulano é ladrão ou não? Beltrana sabia ou não dessa falcatrua? E o que eles fazem com tanto dinheiro? O que tem de tão especial em Miami? O debate culminará nos livros. Sempre eles. Adora dizer que não lê jornal há muitos anos, mas por que haveria? As informações brotam de todos os lados e ele se esquiva habilmente da redundância. Cheio de compromissos e planos, Evandro, ama a vida e ela lhe vem retribuindo tanta devoção. Onde vai é disputado. Para quem se acerca de sua mesa, as leis são muito claras. Mesmo que esteja num dia menos inspirado, as pessoas abrirão espaço a um aceno seu. É o olhar dele que legitima, acolhe ou repudia os recém-chegados. Com um piscada, avaliza o empréstimo de um livro e intercede em favor de alguém em seu raio de influência. São felizes as pessoas que amam o ofício de vocação. Entrando nos 70 anos, ele é a prova bem viva da tese. Longa vida ao mestre – um grande homem.

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