Ouro Preto - by João Rego

Ouro Preto – by João Rego

Teresa Sales

Saímos de Tiradentes às 11:30. O sol já aquecera o dia e eu estava abrigada para o desconhecido. Ele vai debulhando grão a grão as contas de sua vida. Vez por outra diz que quer saber da minha. Quer. Quer não.

Eu estou mais interessada nas montanhas mineiras, no verde da estação seca, nos gados que aparecem esparsamente, nos cheiros. Minas tem seu cheiro. Não é o meu agrestino, de velame. É o seu, Sebastião. “Só as encostas guardando o florir de árvores esfolhadas: seu roxo-escuro de julho as carobinhas, ipês seu amarelo de agosto”.[1]

De Tiradentes a São João Del Rei a estrada segue o curso do rio. Até paramos para ouvir o seu cantar e eu colher no mato uma florzinha azul que pus na sua lapela. Um paletó de linho amarfanhado por sobre calças jeans de muito usadas. Reparo pela primeira vez as suas mãos ao volante e trocando de marcha. Desejo suas mãos.

Madre Deus, São Vicente de Minas, Cruzilha. Cruzamos cidadezinhas acanhadas e sem nenhuma beleza. Ele conhece a gente, cumprimenta as pessoas pelo nome. Subimos serras. Em Airuiuoca paramos na venda (arranjou mulher nova, Sebastião?). Tomamos cachaça, em pé no balcão. Levamos o resto da garrafa e mais um queijo. Para onde?

“O absurdo ar. Chatos mapas. O céu de abismar. (…). Agora, manchava o campo a sombra grande de uma nuvem. (…). Só perseguia a paisagem. (…) as nuvens de amontoada amabilidade, o azul de só ar, aquela claridade à larga, o chão plano em visão cartográfica, repartido de roças e campos, o verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e a verde; e, além, baixa, a montanha”.

O asfalto já se ia longe e há muito rodávamos em curvas, subindo cada vez mais em estradas de terra. O barulho do motor da caminhonete faz contraponto à sua prosa. Cheiro de óleo diesel.

Entramos em suas terras. Uma corrente enferrujada com um cadeado para nada prende a porteira. Abrir a porteira me leva aos oito anos, à fazenda de meu avô. Volto: o mato úmido, os cheiros mineiros mais apurados. Por uma trilha com serventia apenas para animais e automóveis quatro por quatro, seguimos íngremes ladeiras acima.

Quando chegamos à casa, o sol já se despedia por trás das montanhas. A vegetação não é diversa da que nos acompanhou. No dia seguinte, saberei que, sem precisar viajar de avião, estamos em cima de nuvens parecidas com chumaços de algodão.

“Passou a paisagem pela vista, só a segmentos, serial, como dantes e ainda antes. De roda, na vislumbrança, o que dos vales e serros vem é o que o horizonte é – tudo em tudo. Pois, noutro lanço de vista, ele pegava a paisagem pelas costas: as sombras das grotas e a montanha prodigiosa, a vanecer-se, sobre asas”

Sabemos que é preciso comer porque há muito já se foi a hora do almoço. Numa peneira tem feijão debulhado de véspera. Tem a cachaça e o queijo da venda. Cozinha mineira: panelas e utensílios pendurados num varal de bambu, cordas de cebola, de alho.  Acender o fogão de lenha. Eu, expectadora. Fogo para aquecer a cozinha, a água do feijão, a água do chuveiro. O mesmo fogo.

A última claridade do dia vai cedendo lugar aos candeeiros, ás tochas, às velas. Os passarinhos, que já ninhavam, se despedem com cantos suaves. Impera o silêncio e um mistério.

A noite deveria ter algum resto de lua cheia, que teima em não aparecer. Noite escura com estrelas esparsas e um frio maior que meus agasalhos. Aquece-me sua lã de carneiro.

Como se nos conhecêssemos de um tempo ancestral que dispensa palavras. De uma relação que não se nomeia. De corpos. Ainda não nos tocamos. Pela primeira vez nossos olhos se encontram e se enternecem. Ele coa café e olho suas mãos talhadas por Aleijadinho, calosas da enxada, do trabalho de artesão na arte do bambu.

[1] Todas as citações do texto são das Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa