Fernando Dourado

Noite de domingo. A paisagem que vejo nada tem a ver com as imagens da televisão. Lá fora, reina a escuridão tenebrosa de Sandton, bairro de Johannesburg, África do Sul. A noite africana é densa, quase opressiva, nesse país cheio de cicatrizes. Mas pela CNN, vejo o centro de Atenas. Fiéis ao estilo efusivo, os gregos soltam fogos e, por significativa margem, acabaram de cravar a opção do blefe. Mas talvez haja outra razão: não querem renegar os valores que lhes balizaram a vida. Então pagam para ver no que vai dar. Pois bem, da mesma forma que se instaura no Brasil um debate sobre o preço da farra, aos pés da Acrópole o dilema ganha um tom abrasivo. Como crianças criadas pela avó, não lhes parece claro que, no fundo, estão pedindo o melhor dos mundos: permanecer na zona do euro e rasgar as faturas passadas. Nesse contexto, a tecnocracia leva um banho da antropologia. Senão, vejamos um paradigma tão mundano quanto confiável.

O ponto de intersecção mais efetivo que houve nos tempos modernos entre os países do norte da Europa e a Grécia atende por um nome bastante sugestivo: kamakia. Do que se trata? Ora, a partir dos anos 60, quando a Grécia foi descoberta por turistas escandinavas e alemães como um destino de sol e desvario, os jovens rapazes das ilhas perceberam que podiam viver bons momentos sem botar a mão no bolso enquanto o sol ardesse. Para tanto, bastava levá-las para passear na garupa da moto, coreografar a dança de Zorba, preparar um cardápio caseiro, se embriagar de ouzo e mergulhar despidos nas águas cálidas do Mediterrâneo. Elas adoravam a experiência e eles se sentiam no melhor de seu elemento físico e humano. Um estado de espírito, de resto, que a moeda única jamais conseguiu reproduzir com consistência.

Os kamakia – uma versão helênica de gigolôs – eram pessoas simples, mas divertidas. Eram liberais com as nórdicas e conservadores em casa, onde as esposas tinham filho ano após ano, e para onde eles voltavam no fim do verão. Com o inverno, retomavam a costura das redes de pesca; beijavam a mão do arcebispo aos domingos; criavam burricos; abatiam uma ovelha num batizado e se entregavam ao bucolismo da vida campesina – o jogo de gamão, horas de conversa animada, identificar os ventos pelo nome e dormir cedo. As mulheres – que não precisavam ser de Atenas, como as da música – efetivamente não tinham “gosto nem vaidade”. Mas eram o esteio de um lar ortodoxo, feito para durar. Por que não fechar os olhos para as transgressões de verão dos maridos kamakia? Afinal, eles voltavam com um presentinho e desculpas conjugais insinuadas que jamais integraram o cotidiano oriental.

Não eram raras as histórias de alguns casos de amor. Episódios que retratavam holandesas de olhos verdes com meridionais parrudos e pândegos. Alguns deles foram morar no Benelux e até no Canadá. Vê-los hoje, septuagenários, narrar o que foi essa experiência é uma aula de psicologia intercultural – cadeira que, infelizmente, não consta da grade de economia. Difícil foi o caso em que ficaram mais de um par de meses no idílio branco. Logo estranhavam o frio, a comida, o jeito de ser dos estrangeiros e se torturavam de saudades das igrejinhas alvas, das mulheres de preto e do azul da água. Pois bem, enquanto as relações da Grécia com os países do norte se assentaram sobre bases honestas de complementação natural, tudo correu de maravilha. Mas como o que não falta é gente para atrapalhar o que está funcionando, alguém jogou areia na engrenagem.

A Grécia de hoje – pronta talvez para retomar a vocação levantina em detrimento da maquiagem europeia – estampa o desastre da tecnocracia vesga e onipotente. A tentação sempiterna de fazer caridade com o chapéu alheio que acomete gente de todas as latitudes. Agora que o verão chegou, os gregos estão à beira da falésia. Para complicar, se a Europa contemporizar, o naufrágio desencadeará efeitos sistêmicos que abalarão as próprias fundações do euro – do Báltico aos Bálcãs. Pena que Frau Merkel só conheceu essa versão ácida de gregos enfezados. Teria adorado os kamakia da velha guarda e saberia desde então que eles têm seu próprio código de ética. Se chamado para uma festa, o convidado grego será o que mais vai dançar, o que mais vai beber e até a louça da casa pode ser dizimada num acesso de euforia e amor ao hoje, o aqui e o agora. Mas todo kamakia tem seu preço e nenhum deles admitirá que está cobrando pelo que não deu. Em Atenas como em Brasília, chegou a conta da festa.

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