Fernando Dourado

Cena de Manhattan - Woody Allen.

Cena de Manhattan – Woody Allen.

Armando e Letícia formavam um casal auto-suficiente. Isso porque divertiam-se quando sozinhos; conversavam por horas sem atentar para o relógio e eram muito carinhosos um com outro. Ele não podia sequer cogitar de magoá-la e ela se desdobrava para fazer tudo o que fosse do agrado dele. Qualquer coisa. Se a maioria das pessoas se sentia embevecida com uma relação que parecia levitar, eram também muitos os que ficavam amuados com tamanha cumplicidade. É da condição humana, não é mesmo? Pois sendo Letícia uma mulher recatada e austera consigo própria, como conceber que ela tivesse acolhido Armando – ambos cinquentões -, sendo ele o sujeito pândego e irreverente que parecia ser? É claro que eram bem poucos os amigos dele que se opunham à que ele se relacionasse com Letícia. Isso porque achavam que ela lhe podava os impulsos destrutivos e a impetuosidade lendária que trouxe do berço. Certo é que as opiniões se equilibravam nos extremos. Ela lhe salvara a vida, diziam uns. Ele lhe dera alegria e fulgor, defendiam outros. Julgamentos de uma sociedade de cidade média, convenhamos. Nem tão pequena para viver de futricas e nem tão impessoal a ponto de ignorar as frutas sumarentas do quintal alheio.

Como todo casal que já não tinha que se preocupar tanto com filhos – muito embora os de hoje arrastem a dependência até que se lhes cresçam os primeiros tufos de cabelo branco, quando não até que deem as primeiras tateadas de bengala -, Letícia e Armando construíram pequenos ritos que lhes pontuavam a vida. Morando em cidades diferentes e sendo pessoas de natureza independente – dessas que nunca, jamais, precisaram ouvir de ninguém o que deveriam fazer -, eles sequer se falavam diariamente. Muito pelo contrário. Quando Armando rodava mundo, o que era frequente, e ela varria o Brasil, podiam ficar até quinze dias sem trocar uma palavra ao telefone. Da parte dele, ela ainda recebia uns e-mails detalhados, até mesmo meio floreados, a depender do destino e da inspiração do dia. Dela, chegavam quando muito uns rabiscos deformados pelo corretor de texto das geringonças eletrônicas de que era adepta. E olhe lá. Nem por isso se amavam menos. Esse distanciamento era vital para que um não invadisse a vida do outro e para que, assim fazendo, tivessem novidades fresquinhas para se contar quando dos reencontros alegres. Como amiga e vizinha dela, sempre admirei essa dinâmica com viva expectativa.

Convencidos ambos de que viviam o amor da maturidade, muitas vezes o mundo ao redor para eles não existia. Até dormir parecia ser programa. Ficar de papo para o ar, contando e ouvindo histórias da infância. Recebiam muito em casa e ouviam os feitos épicos de outros casais com ar interessado, mas meio cético – não raro entediado. Desconfiavam especialmente dos casais que se consideravam inapelavelmente felizes. E dos outros tantos que se queixavam de seus pares e, por um sortilégio de diabretes, não conseguiam se desvencilhar um do outro. Isso porque o relacionamento de Letícia e Armando jamais conheceu os chamados altos e baixos. E, parece, nunca resvalou para o tédio absoluto. Ademais, uma certa calmaria vez por outra é bem-vinda. Ele se divertia com as observações dela. A forma de ver o mundo, a paixão pelas cores, os ângulos preferidos das fotografias e o afeto que a unia às pessoas mais improváveis. Ela, a seu turno, ria com as histórias dele. Ora ele contava as aventuras de um tio que, ensandecido com uma úlcera, atirava nos pés dos pedreiros. Ora a enternecia com episódios de seu amado pai – um homem que ela teria gostado de conhecer e que certamente teria também curtido imensamente a placidez da companhia dela.

Até quando se estranhavam, o tom era amistoso. Divertido, quase. Na noite do último Natal, eles tiveram um bom exemplo disso – pelo que apurei depois. Isso porque Letícia chegou em casa às sete da noite e espalhou na mesa de jantar um arsenal de laços de fita, papel dourado, caixas, vasos de flores, cartões coloridos, lápis, colas, canetas, pinceis, tesouras e adesivos. Armando ficou longo tempo no quarto. Viu os noticiários e se deliciou com os programas de culinária – mesmo porque Letícia não tivera tempo sequer de comprar os pasteis de Natal, ditos “de festa” aqui no estado. Paciência. De vez em quando, ele passava por ela sob pretexto de ir à cozinha. Era uma forma de dizer: “Letícia, estou aqui”. Séria, concentrada que nem monja em meditação – parece que a estou vendo -, ela só tinha olhos para os presentes. Quando ele já voltava da cozinha pela terceira vez, ela comentou sem tirar os olhos do que fazia, como se falasse para si própria: “O que mais me dá prazer é presentear quem precisa. Gente que vai fazer bom uso da lembrança. E não premiar quem já tem tudo”. E submergiu nos desvãos daquela espécie de autismo brando, mas teimoso – tão dela e tão solene.

Armando deve ter pensado: “O que se há de fazer? Não vou mais sair hoje. Tomo um drinque, durmo cedo e amanhã estarei em forma. Sem ressaca e pronto para a viagem”. E aqui, amigos, chegamos talvez a um ponto importante desse relato testemunhal. Todo fim de ano, desde que se reencontraram, eles viajavam para o mais longe que pudessem. Armando é dos que dizem: “Aproveite enquanto estou vivo e em forma para conhecer pelo menos um pedaço do mundo que já visitei. Nada de Paris, Praga, Lisboa. Isso você fará quando enviuvar – com meu sucessor, com seus netos e gastando meu dinheiro. Comigo você tem que ir para São Petersburgo, Ivalo, Safed, Kyoto, Varanasi”. E ela topava. Se topava… Todo ano, por volta de novembro, ele fechava um roteiro – sempre guardando uma carta na manga para criar suspense – e eles iam para o que ele gostava de chamar de os confins da Terra – em nítido exagero -, já que ele é a hipérbole em pessoa. Segundo Letícia, a encarnação da velha música de Cazuza. Ainda em novembro – ou mesmo antes – ele começava a lhe falar dos lugares e lhe presentear com livros que lhe aguçassem a curiosidade, a vontade de chegar lá. Esse era o ponto culminante do ano deles e de muitos de nós, seus amigos. Até mesmo dos mais insuspeitos.

Era o momento em que ambos ficavam mais a dois do que nunca. Quando o último novembro chegou, as passagens já estavam compradas há muito tempo porque Armando temia a disparada do dólar. Mas, e isso talvez explique os tempos verbais dessa pequena e detalhada narrativa, alguma coisa parecia estar faltando ao ritual de 2015. Será que o programa estava se banalizando? Será que já não vinham valorizando tanto estar a dois? Tinha mais. Ora, Armando esse ano sequer lhe trouxera os livros e os guias coloridos de praxe. Por que seria? Talvez porque pudessem comprá-los na escala intermediária. Não, convenhamos, essa era uma razão bem fraca. Letícia será sempre uma mulher muito ocupada – espero – e não teria tempo de ler um livro copioso se não o recebesse com boa antecedência. Estranho, me confidenciou Tatiana, a filha dela. Antes de continuar, vale dizer que o roteiro estava longe de banal. Depois de uma parada na Turquia, a meta era passar uns dias no Sudeste da Ásia – isso foi o que ela me disse en passant. E creio que ainda sou uma amiga. É claro que não poderiam ver em semanas o que Armando levara mais de trinta anos para conhecer. Mas algo de belo fariam, disso tinha certeza porque o conheço.

E, no entanto, lá estava Letícia indiferente à bagagem; distante do navegador Google; alheia aos livros que não chegaram. Quanto a Armando, confiante no taco de viajante experiente, tudo parecia de imensa obviedade. Aparentemente, pelo menos. Letícia fazia pacotes 24 horas antes do embarque e tudo o mais lhe parecia prioritário, menos a viagem. Armando levitava em sua própria nebulosa de preocupações: 2016, a saúde, os novos hábitos, os escritos, as leituras, a reinvenção de si, a mãe, o linfoma que mantinha em segredo, os filhos destrambelhados mas felizes e pouco mais do que isso. Sobre a Tailândia que é bom, nada. Sobre o Cambodja, menos ainda. Quando muito, o hotel do Ano Novo à beira do rio dos reis. O mais haveria de se arranjar – como sempre. Embrulhos feitos, saíram para um périplo por várias casas de amigos. Ele não quis estragar a festa dela com amuos. E, ademais, estava com fome, se o conheço bem. Dia seguinte, continuaram no mesmo diapasão de fazer uma visita atrás da outra. Embarcariam só às dez da noite, não é? Logo, tinham tempo. Bem à vontade, levaram parentes queridos às suas casas e pareciam, no fundo, ignorar que teriam mais de trinta horas de voo pela frente. Às oito da noite, não tinham sequer uma mochila pronta. Fiquei em pânico quando soube, mas o que podia fazer?

Por que não se contentar com a lista básica? Algum dinheiro, cartão de crédito, documentos, celulares e roupas leves. Era assim que pareciam pensar e isso surpreendeu muito Tatiana que, ainda no elevador, comentou comigo com um sorriso bem triste: “Esse ano parece que o entusiasmo passou longe, tia”. Sendo o destino localizado na zona equatorial, talvez isso explicasse tamanha negligência já que não precisavam separar pesadas roupas de frio. Seria esse um bom motivo? Não sei se saberei um dia. Isso porque antes das nove horas, tão logo Frederico – o filho mais novo dele – os deixou no aeroporto, eles haveriam de constatar que, de fato, algo correra demasiado frouxo na programação. E então, com a constatação do fato singelo, o edifício do amor de Letícia e Armando apresentou, do nada, uma grave rachadura lateral, a que não estávamos nada acostumados. E sequer preparados. Isso porque já provaram os homens sábios que nada acontece por acaso e que um espirro pode ser sintoma de grande mal. Da mesma forma que uma febre leve e constante prenuncia um dano maior. Pois bem, já na fila de embarque, na hora de apor os passaportes sobre o balcão da atendente sorridente e natalina, Letícia ficou pálida e quase não conseguiu falar. Mas, como é de seu feitio, encarou o fato de frente.

Assim sendo, diante do que julgou ser a antecâmara do inferno – dada a reação que Armando poderia ter -, ela abriu a página do passaporte e assinalou com o indicador a data de validade do documento. Pois bem, ele expirara há sessenta dias e ela se esquecera de renová-lo. Um dia depois, eu saberia que ele foi incrivelmente brando e só murmurou: “Puta que o pariu, Letícia. Estava na cara. Liga já para Frederico vir aqui dar uma mão com essas malas. Quanto a nós, vamos sair por aí e tomar umas”. Foi só até onde eu soube. Desde então, ninguém tem notícias. Cada filho tomou um rumo de praia e as malas estão até hoje no vestíbulo da portaria. O celular que ela nunca foi de muito atender, agora está mudo. O carro permanece na garagem. Para minha consternação, nosso prédio é reconhecido por organizar uma bonita festa de réveillon. É talvez a mais elegante da parte alta da cidade e temos queima de fogos à meia-noite, sob meu comando ao microfone, irradiando a contagem regressiva. Sem saber o que dizer de meus amigos sumidos na passagem de ano – e ele também é um queridíssimo, não tenham nenhuma dúvida quanto a isso, nenhuma mesmo -, vou vestir o lindo conjunto branco que preparo para essas ocasiões, mas dessa vez meu coração estará contrito e, só de pensar, quero chorar. Mas como não sou louca, não posso deixar que ninguém se aperceba.

No fundo, queria só que eles estivessem bem. E, de preferência, lá em Bali, Hanói, Hong Kong, sei lá. Com o passar dos anos, eu me acostumei a ouvir dele – jamais dela – as histórias sobre a passagem do ano: onde estavam, o que jantaram e o depois. Temo que a quebra da dinâmica deles assinale também meu fim com Armando.

 

***