Fernando Dourado

 

“Enviarei adiante de ti um Anjo e expulsarei os cananeus, os amorreus, os hititas, os ferezeus, os heveus e os jebuseus. Sobe para uma terra que mana leite e mel. Eu, contudo, não subirei no meio de ti, porquanto és povo insubordinável, de dura cerviz, e, caso seguisse convosco, Eu vos poderia exterminar ao longo do caminho.” – Êxodo, 33:3

Kibbutz members celebrate the Jewish festival of Passover in the Beit Shean Valley in 1967.

Kibbutz members celebrate the Jewish festival of Passover in the Beit Shean Valley in 1967.

 

1. Em abril de 1976, portanto há quase 40 anos, eu completara dezoito há dias e era movido a uma única certeza: a de que queria rodar mundo. Logo, conhecê-lo seria, essencialmente, minha razão de viver. Sem pressa em reatar com as sendeiras empacotadas do aprendizado formal – este poderia esperar pois, de tão tedioso, custaria a sair do lugar -, mas bem ciente de que nunca mais voltaria a viver tão boa confluência astral quanto a de então, fui passear de bicicleta pelas alamedas primaveris do Bodensee, no sul da Alemanha, depois das aulas no Instituto Goethe. Vivia, então, na aprazível Radolfzell, cidade próxima das nascentes do Reno e das bonitas cataratas de Schaffhausen, na vizinha Suíça.

Acompanhado por Maria Liebsch, uma jovem de muitos encantos, porém refém de uma halitose que me impedia de beijá-la com a intensidade que sua carenagem merecia, em dado momento lhe disse que passaria as férias de verão em Israel. E que, para tanto, escreveria uma carta para a embaixada em Bonn e pediria orientação sobre como fazê-lo com estilo e a bom preço. Por muito que levasse em conta suas ponderações de mochileira rodada – veterana de Índia, Togo e Sibéria, entre outros destinos originais -, não me sensibilizaram os argumentos de que se tratava de uma área de alto risco. Soberbo, afirmei que voltaria da experiência ileso. Pois bem, este foi talvez o único erro de avaliação que cometi naquela tarde.

Efetivamente, a tal carta foi mandada e prontamente respondida. Assim, fui instruído pelo setor cultural da Embaixada de Israel a procurar uma organização denominada “Aufbauwerk der Jugend”, em Frankfurt, e, já no mês de julho, embarquei para o Oriente Médio, num voo da El Al, disposto a trabalhar num kibutz por uma temporada de cem dias. O pacote pouco me pesou no bolso já que o programa se inseria no quadro maior de aproximar dois povos que, apenas três décadas antes, tinham vivido um circo de horrores, uma vez estilhaçada a ilusão de que a assimilação da elite judaica pouparia seus irmãos do Leste da sanha nazista. Apesar de não ser alemão, o empurrão da Embaixada me abriu um caminho. O que será que escrevi em carta tão convincente?

Ao retornar àquela ciclovia, alguns meses depois, quando o outono já desfolhara as margens do lago de Konstanz no trecho que ia de Radolfzell a Gaienhofen – refúgio de Hermann Hesse -, efetivamente, eu voltara inteiro. E sobrevivera, incólume, aos percalços da longa temporada. Ileso de todo, contudo, eu não estava. Mais magro e com a pela crestada pelo sol, em alguma medida tinha assimilado os traços ásperos dos anfitriões. Altivo, perdera um pouco da ternura. Mais sincero e assertivo, recomendei a Maria que consultasse um médico para investigar o mau hálito. Mudara, enfim, mas a metamorfose que se operara ainda iria muito além do ademão cosmético dos maus modos verbais. Varava, na verdade, as camadas mais íntimas da cebola.

Isso porque a temporada que passei acantonado na Alta Galileia haveria de se confundir, mesmo depois do açoite revelador dos anos, com os melhores dias de minha vida. Ademais, por muito que tenha voltado a Israel nas quatro décadas subsequentes, jamais reatei com tanta felicidade quanto a que senti naquele período. De pouco valeu lá regressar em condições de me hospedar em belos hotéis, onde naquela época só entrara para servir café. Como foi o caso, por exemplo, da boa estalagem do kibutz, onde derrubei uma faca melada de geleia no paletó de Pierre Trudeau, sob o olhar incrédulo do segurança do Premiê canadense. Este sorriu, nervoso, mas ainda me deixou a gorjeta com que fecho esses parênteses.

Então, penso: como explicar esse idílio? Ora, tanta felicidade não residia só em trabalhar no kibutz Ayelet HaShahar. Sequer nos meus dezoito anos. Ou ainda menos no humor do rapaz positivo que amava a vida. Tampouco na confiança no futuro ou na crença cega na humanidade – se este não for um clichê forçado para um rapaz imberbe. Não foi sequer por conta das mulheres com quem vi o céu mais estrelado do mundo, depois de noites abrasivas em que magnólias e orquídeas exalavam um perfume adocicado. O segredo dos dias felizes estava na soma simultânea de todos esses elementos. Desde então, até por definição, eles jamais voltariam a andar juntos e a vibrar em uníssono. Sem delongas, sugiro que passemos ao relato.

*

2. Os primeiros dias de julho de 1976 foram inesquecíveis para a história contemporânea de Israel. Depois de uma modorra que lhe quebrara a autoestima, apesar da vitória na guerra do Yom Kipur, apenas trinta meses antes, o País festejara com estrépito o resgate dos reféns judeus que, passageiros de um voo da Air France, foram bater em Entebbe, Uganda, onde o psicótico Idi Amin Dada deu guarida à sordidez das maquinações dos terroristas – estes embarcados em Atenas. A unidade de elite Sayeret Matkal, apesar da pungente baixa do coronel Roni Netanyahu, irmão do atual Premiê – dito Bibi-, mostrou ao mundo que a vida dos judeus não mais seria joguete nas mãos de ensandecidos. E que informação, destemor e treinamento são, quando combinados, letais.

Ora, quando o jumbo da El Al se aproximou de Tel Aviv, sobrevoando os hotéis da orla e arrancando lágrimas de gente de toda idade ao som caloroso de “Hevenu Shalom Aleichem…“, na voz de Chava Alberstein, eu mal podia imaginar que, apenas minutos mais tarde, desembarcaria num terminal bastante depredado, onde eram dúzias as cadeiras quebradas e onde as latas de lixo tinham um estranho “Made in Uganda” rabiscado a giz. Ora, confinados em dinâmicas de integração por três dias antes da partida, não sabíamos o que acabara de se passar. O aeroporto só refletia a farra colossal que unira o País e lhe dera novo alento, surpreendendo até os israelenses – poupados de detalhes até horas antes do desfecho. Afinal, o sigilo absoluto fora seminal na façanha.

Ao chegar, nosso grupo já estava bem coeso. Éramos quinze: treze alemães, uma austríaca e um brasileiro. Eu, o mais jovem; Hans-Jürgen, de Karlsruhe, aos 26, era o mais velho. Ulrich, de Wuppertal, viraria pastor luterano e cofiava o cavanhaque o tempo que passava acordado. Andrea, de Göttingen, era meiga e linda. Marianne, de Aachen, me comeu na segunda noite. Mathias, de Giessen, era o agregador. Outras garotas de Essen, Bochum e Bremen eram mais comuns. Pia, de Linz, Áustria, era a mais latina da célula. À nossa espera, David, um judeu de Bagdá de barba negra, olhos tristes e rins combalidos. Morreria cedo, acoplado à máquina de hemodiálise, mas sem saudades da Mesopotâmia natal que lhe valera um difícil começo.

Subimos com nossos sacos num caminhão que engasgava a intervalos e, como se nos estudássemos uns aos outros, atravessamos a noite escura em silêncio, identificando as estrelas do firmamento. Em Cesareia, nos fizeram descer para verificação da bagagem. Em Afula, nova parada para checagem de documentos. Em Tiberíades, outra cavilação. David só arqueava as sobrancelhas e dizia: “É assim para todos nós. Essa é nossa vida. Bem-vindos a Israel”. Ainda pouco afeito às regras do universalismo, minha alma particularista se revolvia, mas tinha que relevar o incômodo. Tarde da noite, sob o desenho arqueado da Via Láctea, chegamos ao destino. David, nosso Patriarca, nos levara sãos e salvos ao kibutz prometido, por assim dizer.

À nossa espera, mais de quarenta voluntários estavam à espreita. Como veríamos, o ritual de aguardar os novatos logo integraria também nossa rotina. E por que? Ora, essa avaliação dos colegas vinha da dinâmica dos hormônios em ebulição. Da vontade de lhes apresentar o kibutz com ares de veterano. Do impulso de integrá-los à nossa visão e, é claro, se prestava a cativar as meninas de uma vintena de países que traziam no olhar o mesmo ar aparvalhado que fora o nosso próprio ao chegar. O corpo cansado acolheu bem o frescor da altitude e as tensões logo se dissiparam. Exausto, adormeci. O que eu não esperava era despertar esbaforido, no quarto inundado por uma luminosidade que cegava. No ar, sons e cheiros novos.

Enquanto me espreguiçava no alto da escada de ferro, me explicaram que tínhamos ao norte o Líbano. A nordeste, a Síria, cujo Golã fora incorporado por Israel por razões de defesa. A oeste, o Mediterrâneo, cuja fronteira setentrional era Rosh Hanikra. Do outro lado da pista, também invisível dali, o sítio arqueológico de Tel Hatzor. À direita, via os estábulos. Dali vinham mugidos e o cheiro de estrume das vacas. Montes de pedra sinalizavam os bunkers de abrigo antiaéreo. À porta do jardim da infância, um tanque russo calcinado servia de brinquedo para os futuros guerreiros. Ao pé da escadaria, o gato Charlie ronronava e estapeava um passarinho agonizante. A me olhar, Marianne, olhos verdes e dentes brancos. “Guten Morgen“. “Boker Tov“, respondi.

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3. Fundado nos tempos pioneiros do Mandato Britânico, Ayelet HaShahar – literalmente, Gazela do Amanhecer, numa alusão à Estrela Matutina – era um kibutz progressista. Formado por imigrantes da Europa Central no bojo da Segunda aliya – palavra hebraica que define as ondas migratórias de novos colonos chegados à Palestina -, ficava numa área bonita. No sopé dos contrafortes do Golã e à beira da estrada que une Metullah, ponto extremo norte, a Rosh Pina, passamos o primeiro dia fazendo um meticuloso reconhecimento de terreno. Passeamos por Safed, descemos ao Vale do Hula e molhamos os pés no filete d’água do rio Jordão. Depois, ouvimos a preleção de um senhor que mais lembrava um badchan – animador de casamento de shtetl.

O tratamento interpessoal ali era igualitário. A palavra que mais se ouvia era, é claro, shalom. Mesmo ao conversar com uma velhinha octogenária de Breslau, na Silésia polonesa – ela em iídiche e eu em alemão -, a prática vigente pedia que eu lhe dirigisse a palavra na base do você – ou Du, no nosso caso. Afinal, éramos chaverim – camaradas. Todos comiam no refeitório comunitário, salvo no caso dos muitos idosos ou incapacitados. A disciplina era frouxa, exceção feita à segurança e às prestações de horas de trabalho. Mesmo ressacado de vinho Carmel, se impunha despertar no escuro e ir para os pomares. Era do jogo, estava pactuado. Ou seja, ninguém o mandava para a cama cedo, mas muita gente poderia tirá-lo de lá antes de o galo cantar.

O kibutznik, ou seja, o morador permanente da comunidade, não era gente de se abrir em sorrisos por qualquer coisa. Os velhos poderiam ser amargos, mas eram atenciosos. Muitos tinham números de campos de concentração tatuados no antebraço. Os jovens eram brincalhões, mas algo insolentes – o que não é incomum entre eles. Os adultos pareciam irônicos, mas era só uma fachada de defesa. As crianças eram a razão de viver de todos e a ganenet – a dedicada educadora da creche, onde meninos e meninas dormiam longe dos pais – gozava de status à altura da responsabilidade. Pois dali sairiam os melhores quadros militares do País. Afinal, o grosso da população de Israel vivia numa nesga tão acanhada que sumiria na Mata Sul pernambucana.

No final da segunda tarde, tivemos debate com sobreviventes de vastas zonas germanizadas, o que era um capítulo doloroso para os colegas alemães. Vi que alguns saíram amuados e todos, invariavelmente, cabisbaixos. Convenhamos: a Guerra acabara há apenas três décadas. Para a História, portanto, era um nada. Abastecidos de cupons para cigarros Silon; vinho de mesa; latas de biscoito; bolsas de chá; um vidro de café solúvel, e devidamente instruídos sobre nossas tarefas – eu começaria na colheita de ameixas na madrugada seguinte -, voltei ao alojamento com Ulrich e vi os alemães se entregarem ao que mais gostam: esfregar o chão, arrumar o ambiente para que este ficasse gemütlich e, é claro, planejar com inusitado nível de detalhamento.

De minha parte, nada era tão prazeroso quanto pensar na pequena proeza que realizara desde o passeio de bicicleta com Maria Liebsch. Parecia um sonho, mas estava efetivamente em “Eretz chalav udvash“, ou seja, na decantada Terra do leite e mel. Era tremendamente quente durante o dia, mas o que se podia fazer? Como único sul-americano entre dezenas de voluntários, logo me tornei conhecido, quase popular. Meus mentores no kibutz, o casal Natan e Liska, ambos de Lodz, Polônia, se prontificaram a me receber para conversar sempre que precisasse. Eles também tinham perguntas a fazer sobre o Brasil e o velhinho era grande enxadrista. Se tinham esqueletos no armário, estes nunca apareceram. Ambos morreriam antes do fim da década.

Apesar de não-religioso, o kibutz celebrava o shabat com apuro e, já nas tardes das sextas-feiras, quase ninguém trabalhava. Tampouco nos sábados. É claro, domingo era dia normal. Vestindo roupa limpa e de cabelo molhado, íamos ao refeitório para comer bolinhos de carpa, frango assado, raviolis de batata, ovo com cebola e pão trançado. Ao som do piano, nos emocionávamos com os cantos maviosos e o acender das velas. Enfim, a experiência estava só começando. Na segunda noite, Marianne me levou para conhecer a área da piscina. No pequeno bosque de eucaliptos adjacente, se deu o ataque guloso à presa sul-americana. Fui emboscado e não ofereci resistência. Enfim, podia beijar como aprendera em Paris. “Du bist ein Schatz“, ouvi para nunca mais.

*

4. É claro que o idílio não duraria para sempre. O sabra – o nativo de Israel – é tido e havido como ríspido no trato inicial. O treinamento militar tomava cinco anos da vida dos homens. Ora, dali eles saíam achando que o mundo era um imenso quartel e que os inimigos de Israel assumiam muitas feições. Acomodar uma fruta com aparente desdém na caixa de embalagem podia ser visto como um ato de sabotagem às exportações do País. Nórdicos e germânicos eram mais afeitos às regras e não questionavam a tênue hierarquia. Pois, embora discreta, ela existia. De boa paz, eu tampouco demonstrava estranheza pelo tom brusco. Pelo menos verbalmente. Mas fato é que não tinha medo de cara feia e também sabia demonstrar desagrado, se a circunstância pedisse.

Assim sendo, antes que pudesse chegar às vias de fato com Naftali, decidi que, na semana seguinte, iria trabalhar com Nissim, um raro sefaradi, nascido no Cairo, e que reinava há anos na lavanderia. Melhor jogar fraldas de pano cheirando a xixi nas enormes máquinas de lavar do que correr o risco de ter de ensinar o líder dos pomares a ter bons modos. “Fernando, em hebraico dizemos: não leve no coração. Todo mundo aqui vem de uma história meio feia. Pegue leve”. Assim dizia Gershon, sempre armado e à espreita. A Galileia conhecera terríveis ataques “fedayeem”. Alguns deles a crianças de escola. Ao lado da creche, era como se aquele colosso lituano montasse guarda junto ao cofre forte de nossa comunidade.

Meus companheiros de grupo, sempre às voltas com mapas e calendários, buscavam brechas regimentais para nos beneficiarmos de pontes e esticar o fim de semana em algum ponto do País. De resto, uma constante nesse povo de viajantes que é o alemão. Foi assim que soube de um trabalho insalubre que, feito por dois dias, valia outros tantos de folga. Trabalhei, então, no galpão da pega manual de frangos a ser vendidos no mercado. A poeira fina que subia e o cheiro de cocô de galinha eram nauseantes. Pegava três animais vivos em cada mão e os braços ficavam em carne viva pelas unhadas dos pés desesperados. Só durava três horas supliciantes. Mas valia pelos dias em Jerusalém ou Tel Aviv. Quanto às feridas, era só passar álcool para desinfetar.

Nos passeios que fazia a Acco ou Haifa para um dia ao mar, levava os exemplares de Veja que papai me mandava e relia as cartas em que me contava as novidades. A revista falava de um jogador fenomenal chamado Zico, infelizmente do Flamengo. Mas quando recebi a edição sobre a morte de JK, chorei bastante. De resto, mandava aerogramas e dava minha posição. Não raro ia ao Golã, a kibutzim afiliados ao nosso para ajudar numa colheita pontual. Quando voltei ao Brasil, meses mais tarde, vi que mamãe se tornara especialista na região e tinha um mapa com alfinetes coloridos que assinalavam os locais de atentados e incidentes. Foi comovente e divertido. Ela sempre se opusera a essa aventura, mas fora voto vencido.

A vida seguia com mais altos do que baixos. Numa excursão ao deserto, porém, cometi uma imprudência palmar. Desobedeci a recomendação de só tomar água e comer frutas secas. Aproveitei o mercado de camelos de Beersheva e me esbaldei com cervejas Amstel, babaganouch e houmos, ambos nadando no azeite de oliva. Ora, a combinação da berinjela e do grão de bico com a canícula de 50 graus, foi desastrosa. Pálido e suado, pedia ao motorista a intervalos que parasse o caminhão. Escondido atrás dos cactos, tentava ser discreto para camuflar minha humilhação. Com justiça, fui repreendido em tom de corte marcial. Recuperado, quando me joguei no Mar Morto, a salinidade ardeu nas assaduras. Quase repeti São Pedro, andando sobre as águas.

De outra feita, na Cidade Velha de Jerusalém, buscávamos em quatro um alojamento barato nas imediações do Muro das Lamentações. Um árabe gordo e bonachão, semicerrou os olhos e chutou um preço que nos pareceu tão alto que até seus bigodes se eriçaram. Irritado com o que lhe soou como um abuso, Hans-Jürgen nos disse em alemão que era absurdo pagar aquilo por uma Arabische Spelunke. Mal sabíamos nós que espelunca, tal como orangotango ou ambulância, são palavras conhecidas em várias línguas por semelhança fonética. Nessa noite, fomos dormir no cemitério, nas encostas do Monte das Oliveiras, tangidos pelos preços dos feriados. Não seríamos os primeiros a ir para o sacrifício por irreverência na vizinhança.

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5. Nas aldeias árabes e drusas da região da Galileia e do Golã, eu me sentia muito bem. O ritmo morigerado dos muçulmanos era mais afeito à minha programação mental de nordestino de origem e, no final, selávamos uma cumplicidade rara. Apesar do ressentimento dos árabes para com os judeus que, segundo diziam, lhes tinham confiscado a terra, o tom da prosa parecia ser mais ameno do que o de hoje. Aliás, generais como Moshe Dayan – o do tapa-olho -, nutriam grande apreço pelos árabes; lhes falavam a língua, embora soubessem que, ao trovejar dos canhões, estariam em lados opostos. A direita política de Begin logo viraria governo e, por paradoxo, faria a paz com o Egito. Não é raro a glória recair sobre os celerados, dizia Nahum Goldman.

Nossas pequenas vidas estavam ao abrigo de maiores impactos políticos. Os voluntários judeus eram minoria entre nós, apesar de numerosos. Muitos eram franceses, ingleses e suíços. Pouco afeitos ao calor e ao trato ríspido de regra, reclamavam da falta de politesse e, no desespero, sucumbiam ao ridículo de alegar que suas famílias contribuíam fartamente para as finanças do País. Nem assim os sabras abrandavam. Pelo contrário. No fundo, pareciam ver a Diáspora como parte devedora por se orgulhar de um País que a eles, os nativos, competia defender com a vida. Que purgassem, portanto, algum sofrimento e fizessem jus ao pertencimento tênue que os unia. Era uma forma de pagar royalties por uso de imagem. Na época, não se falava de direitos de arena.

Eternamente de bermuda e roupa leve, me aprazia viver um pouco como bicho, como gostava de dizer. Entrava nos chuveiros comunitários umas quatro vezes ao dia para uma ducha rápida que, bem entendido, respeitasse a escassez hídrica vigente. Não obstante, secava sob o sol enquanto comia uma fruta. Das vezes que trabalhava no estábulo – cuja fedentina é marca quase unânime na paisagem rural de Israel -, fazia meu turno coincidir com o de uma namorada e nos distraíamos nas madrugadas da ordenha mecânica. Nos céus, caças zuniam como se soprados por zarabatanas. Por duas vezes, tivemos festas de casamento e alguns dos nossos cogitavam virar membros residentes e se submeter ao Conselho. Não era meu caso.

Para quem quer que fosse, judeu ou não, as intenções para com o País eram avaliadas pela disposição em aprender o hebraico. Como fazem os catalães com seu idioma. Embora o kibutz não fosse ulpan, ou seja, voltado para o ensino da língua, muitos se empenhavam em estudar o idioma que Ben Yehuda ajudara a ressuscitar. Para mim, a prioridade era consolidar o alemão e alternava três ou quatro idiomas com os locais, compreendendo bem o iídiche germanizado que falavam. Aprendi hebraico para o gasto que, até hoje, me quebra galhos quando estou lá. Mas que cai em hibernação dias depois da partida. Menos mal que o falo e leio para o básico. Melhor do que a imensa maioria dos judeus que conheço, de qualquer sorte.

Nesse contexto, dificilmente nossos contatos com os locais iam muito além da relação de trabalho. No fundo, lhes invejávamos a frugalidade da vida e a aparente desambição material. Eu amava o de cada um segundo suas possibilidades para cada um segundo suas necessidades. Na prática, parece que eles tendiam a espichar um olho em direção a nosso estilo de vida. Será que podiam fazer o que nós fazíamos? A comunidade era solidária com algumas aspirações individuais, mas as limitações eram muitas. Mesmo porque os kibutzim eram geralmente deficitários. Não foi à toa que esse modo de vida perdeu adeptos a partir dos anos 80, quando o vetor do individualismo ganhou tração e, tempos mais tarde, quando o consumismo viraria pandemia.

Procedendo a essa rememoração, percebo que um laivo de desconforto me perpassa. Tantas viagens feitas a Israel depois dessa, em que medida algumas das impressões que resgato estão estritamente ligadas ao capítulo Ayelet HaShahar? Mas ora, não sendo homem da História e estando descompromissado em observar a verdade factual e cronológica, sei que esse fio condutor é aqui o que menos importa. Uma coisa é certa: a repetição da experiência de voluntário só voltaria a ocorrer anos mais tarde quando, já universitário, tentei reatar com o passado. Para efeitos desse arrazoado, contudo, importa que foram essas as reminiscências que resistiram ao tempo. Aquelas dos cem dias na Terra do leite e mel. Shalom.

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