Comecemos por recordar o conceito marxista do “exército operário de reserva”, responsável por manter o nível de remuneração do proletariado industrial no mínimo necessário à sua sobrevivência. Era nesse contingente populacional, composto pelos que fugiam à servidão dos feudos e à desorganização da agricultura da metrópole provocada pela pilhagem das colônias, que a indústria podia sempre reabastecer-se, a baixo custo, de “máquinas de carne”, para repor as baixas do seu efetivo.
Comparando esse quadro com a situação prevalecente hoje em nosso país, vemos que as relações feudais no meio rural já não persistem. Mas, por outro lado, o avanço tecnológico faz com que a indústria empregue cada vez menos gente. E a própria agricultura, pelo processo incontrastável da mecanização, continua dispensando mão de obra. Os filhos do campo emigram para as cidades, onde as fábricas, em sua evolução, mal abrem espaços para os filhos dos seus próprios trabalhadores. O desequilíbrio continua, formando o contingente daqueles que podemos rotular como os novos deserdados.
Nos países desenvolvidos, em que a educação é universalizada, esses indivíduos, bem ou mal, conseguem inserir-se no heterogêneo setor de serviços. (Sabe-se que menos de 5% da população dos Estados Unidos continua empregada na agropecuária). Mas em regiões subdesenvolvidas, como o Nordeste, o destino de muitos é a marginalidade, onde sobrevivem como biscateiros, vendedores ambulantes, engraxates, guardadores de carros, catadores de lixo, mendigos ou criminosos. E nem a hipotética perspectiva de absorção pelo setor industrial pode colocar-se: eles não têm a qualificação exigida pela indústria moderna. Nesse sentido, sua situação é pior do que a dos integrantes do “exército de reserva” de que falava Marx.
Assim, o foco da esquerda – hoje definida por Lionel Jospin, essencialmente, como uma moral, aquela da solidariedade e da busca pela igualdade entre os homens – deve voltar-se para esses desvalidos. Mas como fazer para socorrê-los e promovê-los?
A dificuldade logo surge pela sua composição diversificada e dispersa. Só a miséria os aproxima. Como congraçá-los, para canalizar seus pleitos, discutir a viabilidade de eventuais apoios, instrumentá-los para a cidadania? Experiência interessante nesse sentido foi tentada, nos primeiros governos de Miguel Arraes, como prefeito do Recife e governador de Pernambuco, através da criação das “associações de bairro”, mas não se tem informação precisa sobre sua continuidade e seus resultados.
Uma coisa é certa: a política de simplesmente assegurar-lhes uma renda mínima, do tipo “bolsa família”, sem nada exigir em contrapartida, só se justifica como medida emergencial e temporária. E a razão já foi, há muitos anos, enunciada pelo cancioneiro de Luiz Gonzaga: a esmola, para um homem que é são, ou o mata de vergonha, ou vicia o cidadão. Como alerta o senador Cristovam Buarque, incansável pregoeiro da educação para todos, se a brusca suspensão de tal programa agora seria uma tragédia, a necessidade de sua manutenção, daqui a uns vinte anos, seria tragédia ainda maior.
Afinal, está a me parecer, bem como a um número crescente de pensadores, que a única coisa objetiva a ser feita, para perseguir a meta de uma sociedade mais igualitária, é dar a todos as mesmas oportunidades de crescimento, através de uma educação de qualidade. A mesma escola para ricos e pobres, patrões e empregados, patriciado e povo. Assim, todos poderão conquistar a “titularidade” (entitlement) para o consumo, como bem conceituou Amartya Sen, e também contribuir para o progresso do seu país, na plenitude da cidadania.
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Concordo sobre o recado do Gonzagão para os populistas, Clemente. Quanto à tecnologia reduzindo a necessidade de camponeses e de operários, acho que isso faz parte do processo que vai estacionar o crescimento populacional da Europa em 2035, no Brasil em 2038 ( segundo o Eurostat e o IBGE ), com redução gradativa dessas multidões a partir dessas datas, o que vai ser algo bastante revolucionário, com certeza. Em tese, teremos cada vez mais meios e riquezas a ser distribuídas com cada vez menos gente.
A perspectiva de estabilização da população mundial, em algum momento do futuro, é animadora. O quadro projetado de abundância de bens materiais para todos conforta o coração de quem escolheu ser otimista, por uma questão de princípio filosófico. Mas há muita água para correr antes disso, além do problema da “titularidade” para o consumo de que falei, citando o criador do conceito, o indiano Prêmio Nobel Amartya Sen, a ser resolvido. Só para avaliarmos a dificuldade dessa conquista social: a capacidade de produzir alimentos para toda a população mundial já existe, e, no entanto, milhões ainda passam fome.
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