Fernando Dourado

Women - Traditional Costume in Georgia.

Women – Traditional Costume in Georgia.

“Você não verá aqui em Tbilisi uma só família que não tenha sofrido por conta dos famigerados russos. Já não falo nem da tortura psicológica que significava viver na defensiva porque este era um estado de espirito constante em mais de quinze países-satélites. Falo de desmoralizações, execuções, deportações e o que você imaginar. Vê aquela casa ali? Era a sede da KGB. Para não dizer que Beria só fez atrocidades no país natal, devemos a ele aquele bosque ao lado do teleférico que vemos na encosta. Ironicamente, você me pede para irmos a Gori amanhã, sob o nariz mesmo dos russos que estão acantonados na Ossétia do Sul. Paciência, não vou dizer não a um amigo, vou? Mas não pretendo sair do carro, se você não se incomodar. Quanto a mim, ia para a escola armado no começo dos anos 1990. Era um terror generalizado. Na primeira chance que tive, integrei o governo que botou o guizo em Moscou. Sofri numa cela apertada e passei por interrogatórios excruciantes. Sem nada a provar, me soltaram, os bastardos. Poderia viver fora daqui, mas é isso que eles gostariam de ver acontecer. E esse prazer, eu não vou dar aos filhos da puta. Criarei meus filhos aqui e vivo dizendo o que dizia na prisão: citem só um produto, apenas um, que a URSS tenha produzido de melhor qualidade que o similar americano. Todos silenciam nessa hora. Pena que me faltou altura. Mas meu sonho sempre foi jogar na NBA, no Chicago Bulls.”

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“Boa tarde, eu serei sua guia pela próxima meia-hora, tempo que levará nossa visita. Falo georgiano e russo, mas vejo que você prefere francês, não é? Pois bem, vou tentar. O nome de batismo de Stálin, o homem de ferro, era Iossif Vissarionovitch Djugashvili. E aqui na Georgia ainda é conhecido pelo apelido de “Sosso”. Este vagão de trem onde nos encontramos era de uso exclusivo dele. É blindado e se compõe da cabine principal, duas laterais para os seguranças, uma grande sala de reunião e o quarto dos engenheiros onde eles regulavam tudo no vagão. Mesmo quando ele viajava de avião, o vagão estava sempre lá no destino para dar apoio às viagens menores. Estão vendo aquele porão? Era ali que trabalhava o pai dele, sapateiro de profissão. Esses são os boletins escolares de Stálin. Eles atestam que era o melhor aluno da classe e se destacou também no coro da igreja, o que para muita gente pode parecer uma ironia. A mãe dele queria que fosse padre, mas logo ele se envolveu em atividades revolucionárias. Um neto de Stálin ainda vive em Tbilisi e a filha Svetlana, a face mais conhecida da família, morreu nos Estados Unidos onde viveu. Essas fotos o mostram na Conferência de Yalta. Já aqui, depois da galeria dos presentes, temos o gabinete no Kremlin. Como se vê, ele dava grande valor aos cachimbos, mas os abastecia com fumo de cigarro. Desculpe, mas só posso responder perguntas objetivas e factuais. Obrigada”.

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 “É um prazer conhecer um brasileiro. Sou jornalista e sei que o Brasil é um país colossal. Sei que vocês estão numa situação ruim, mas não se sinta obrigado a falar de política porque também teríamos um monte de coisa a dizer. Menos mal que vocês não têm os russos nos calcanhares. Isso sim é bastante dramático. Já que estamos entre amigos, me permita dizer que acompanho com tristeza o que se passa com o futebol brasileiro que aprendi cedo a amar. A grande catástrofe para vocês não foi a derrota para o Uruguai em 1950. Foram sim as Copas de 1982 e 1986. É claro que você já concluiu onde quero chegar. Para mim, pois, não há figura maior do que Telê Santana. Quem pode se dar ao luxo de perder duas Copas e ser amado pelo povo? E ainda se consagrar como campeão do Mundo pelo São Paulo? Acredite, já vi muita coisa, isso não é para qualquer um. Mas a personalidade desportiva do século não foi Pelé. Foi Garrincha. Dizem que ele não gostava de treinar. Pois fazia bem. Ia ouvir os passarinhos em Pau Grande e pescar. Na hora do jogo, batava ir chamá-lo. Acho que quem mais o entendeu foi João Saldanha. Afora Elza Soares. Ela é viva ainda? Garrincha é poesia. Meu pai também foi alcoólatra. Dr. Sócrates também se foi por conta da bebida. Garrincha, o homem que não sabia quem era o adversário, inventou o fair-play. Diante do zagueiro caído, torto de drible, ele colocou a bola para fora para o homem se recuperar. Incrível. Veja, estamos ambos chorando. Eu só de falar, e você de ouvir”.

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“Como você sabe, caro Fernando, é de nossa tradição fazer brindes. Eles podem ser muito longos, mas hoje farei um curto porque vejo como namora nosso delicioso khachapuri e estamos todos com fome. Pela tradição, fala o homem mais velho à mesa ou o mais sábio. No meu caso, não sou nem um nem outro, mas sou o anfitrião. Então, antes de tomarmos o vinho gostaria que você soubesse que estamos honrados com sua presença. Vir de um país tão distante e sair conosco para comprar o pão do jantar, faz de você um membro de nossa modesta família. Saiba que senti-lo curioso por nossos costumes e respeitoso quanto a nosso passado nos enche de entusiasmo. Sei que somos conhecidos no mundo mais pelos nossos filhos execráveis – cujos nomes não citarei nesta casa – do que pelos homens e mulheres de bem que já legamos ao mundo. Hoje, portanto, vamos nos embriagar à nossa saúde. À amizade entre nossos povos e à paz mundial. Ao fim das tiranias e às boas coisas que unem os homens de boa vontade. Elas são: o gosto pela boa mesa, que já vimos que você tem pela maneira como namora os hinkales; o amor às artes e à música e a devoção às nossas famílias. Que você possa voltar em breve ao nosso país e que leve desses dias as melhores recordações. Somos asiáticos, é certo, mas também sabemos apreciar o que há de bom no mundo ocidental. Bebamos à sua saúde”.

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“Nosso treinamento linguístico era bem típico do KGB. Tínhamos algumas regalias, mas precisávamos dar contrapartidas concretas em escutas para manter os privilégios que, para mim, se traduziam nas viagens. Foi assim que fui à Colômbia e a Cuba. Na primeira, fui a uma feira de literatura em que atuei como tradutora do castelhano para o russo. Na segunda, acompanhei oficinas de músicas de salão para nossos estudantes georgianos. Parece que as coisas não mudaram muito por lá. Os médicos continuam ganhando quarenta dólares por mês ao passo que as putas fazem quase cem dólares ao dia. Temos algumas aqui em Tbilisi e elas são loucas por ouro. É uma forma de mostrar que têm dinheiro. Como temem ser roubadas, pedem aos dentistas que o coloquem nos dentes, como os ciganos. Sim, é verdade que o tempo passa, mas nem sempre as coisas mudam. Na minha idade, já não sei se terei chances de voltar à América do Sul, mas o país que mais me encantaria conhecer seria o Peru. Se já dormi com alguém para ter informações? Sim, é claro. Mas isso também me dava prazer. Usei e fui usada, como todo mundo nessa parte do mundo. Hoje sou guia turística e recebo alguns grupos da Rússia e de Israel, especialmente os que falam inglês. Temos muitos judeus por aqui. Você tem uma forma sedutora de encarar as pessoas, mas sei que isso é latino. Não insista que depois de tanto vinho, posso ter uma recaída, cariño“.

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“Sou americana, a típica menina dos Vales. Cresci em Los Angeles e passava o verão em Venice Beach. Mas eu achava também que deveria fazer alguma coisa pelo país ancestral, dos meus avós e bisavós que era essa distante Armênia. E, é claro, por mim mesma. Afinal, quero construir uma vida nova e para isso nada como um país novo. Fiz faculdade em Washington e depois fui fazer mestrado na França. Foi então que pedi ao governo armênio um posto no exterior que me permitisse terminar a tese. Foi dessa forma que passei uns meses vivendo no Peru e lá eu me apaixonei pela culinária e pela quinoa em especial. Então terminei tudo e vim embora para cá, determinada a plantá-la para ajudar a população a combater o diabetes e acabar com o predomínio da kasha russa. Ou o trigo sarraceno, como também se chama. Passo nove meses por ano lidando com esse povo que é o meu, mas que, ao mesmo tempo, não é. Nem sempre entendo o armênio deles, especialmente quando se trata dos fazendeiros do leste do país. Você sabe que aqui em Erevan falamos uma espécie de dialeto, não é? Pois bem, no começo todos diziam não, o que é uma praxe por aqui. Olhavam a quinoa com reserva por mais que eu dissesse que poderiam ganhar bom dinheiro. Muito mais do que com abricós. Hoje já tenho centenas de cooperados. Pode escrever, quando você voltar aqui, terei fornecedores do mar Cáspio ao mar Negro – os domínios da Velha Armênia que não existe mais. Desculpe, estou bebendo demais e falando besteira. Agora me conte, o que você gostaria de fazer aqui e que ainda não fez? Come on, pode dizer”.

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“Quando a URSS desmontou, eu era militar e estava no Azerbaidjão. Foi por essa época que eles começaram a caçar tenazmente armênios como se estivéssemos nos Bálcãs, para você ter uma ideia de comparação. Os azeris nada mais são do que turcos. Os mesmos que perpetraram esse brutal Genocídio contra nosso povo um século atrás. Enquanto Moscou dava as cartas, éramos obrigados a fingir ter uma convivência pacífica, o que no fundo terminava acontecendo. Pois bem, uma vez desmobilizado, eu vim para Erevan para lutar pela sobrevivência de minha família. Na época que eclodiu o conflito do Nagorno Karabakh, eu fiquei indo e vindo do front. Um dia um oficial russo me disse que se precisasse de gasolina, ligasse para ele. Ora, por um feliz acaso, o cônsul da Alemanha em Erevan me chamou e disse que compraria a gasolina que eu tivesse para abastecer a frota. Comecei a ganhar dinheiro. Apesar disso, ainda tocava percussão num cabaré, logo eu que sonhava em tocar Aram Khachaturian na Sinfônica. Agora tocava para putas e oligarcas. Mas então minha proximidade com os alemães foi crescendo, crescendo. O resultado é que hoje tenho a representação da Wella para a Armênia e conto com boas relações com o governo. Peço-lhe escrever uma novela ambientada aqui para atrair brasileiros para nos visitar. Como podem cem mil ir à Turquia todos os anos e nós aqui só recebermos mil? Preciso ir agora para supervisionar a montagem dos andaimes onde o Papa celebrará a missa na praça da República. Tomara que ele fale do Genocídio. Erdogan vai ter um troço, quero ver a Turquia arder. Como você vê, estou em todas”.

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“Se eu lembro do terremoto? Como poderia esquecer? Era 7 de dezembro de 1988. Já fazia um frio terrível no nordeste do país e nós tínhamos voltado há pouco tempo para cá. Quer dizer, no meu caso, eu estava na Armênia pela primeira vez. Isso porque morávamos em Baku na época das primeiras perseguições contra nosso povo, com o colapso da URSS. Como sempre sobra alguém de boa vontade, meu pai ofereceu a casa que ia perder a um azeri, e este deu a casa dele em Leniankan, praticamente no epicentro do terremoto de Spitak. Ou seja, já saíramos no lucro do Azerbaidjão, já tinha sido um renascimento. De repente, lá tinha eu que sobreviver de novo, dessa vez aos humores da Terra. Estávamos no momento de recreação quando a professora nos disse para sairmos imediatamente. Tudo sacudia. O único dos estudantes que levou agasalho fui eu. Durante anos ela diria a minha mãe que eu seria um adulto prudente porque enquanto todos tiritavam no frio, eu estava no pátio agasalhado em posição de sentido. Hoje toco a vida. Organizo festas, mas tenho dificuldades para visitar certos lugares porque continuo sem passaporte. Viajo com um documento especial, sou apátrida. Achei São Paulo uma cidade feia, fiquei hospedado num bairro chamado Tatuapé, conhece? Já o Rio de Janeiro é uma maravilha. Sai sem um tostão de lá, as mulheres ficaram com tudo, mas valeu cada centavo. Atualmente dou aulas de ioga e tenho salões de massagem tailandesa. Será que você teria um trabalho para me recomendar em seu país?”

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“Acho que fazemos parte de uma corrente da Diáspora que dá as costas ao Ministério que foi criado para esse fim e resolvemos trilhar o caminho de volta à nossa maneira, sem nenhum tipo de tutela. Somos um casal que tem formação em engenharia de computação nos Estados Unidos. Até que, durante uma visita a parentes, despertamos para o potencial das maravilhas do terroir armênio aos 50 anos. Decidimos voltar. Somos um país pequeno, mas com topografia que se eleva de um plateau de mil metros até mais de quatro mil. É um tesouro inestimável, convenhamos. Como estamos numa contramão logística por conta da fronteira fechada com a Turquia, com o Azerbaidjão e sem saída para o mar, pensamos em nos concentrar nos produtos de alto valor agregado. Cosméticos, linha de cuidados com a pele e essências florais para a indústria de perfumes e não só ela. Você percebe algo de diferente nesse rolinho de berinjela? Pois bem, é uma essência de rosas que o cozinheiro acrescenta à razão de uma pequena gota para uma fornada inteira. Não dá um sabor especial? Moramos anos em San Francisco e amamos a área da Baía. Nossos filhos ainda vivem lá, mas aqui nos sentimos imbuídos de uma missão. Nossa fábrica fica logo ali na direção do Monte Ararat. Passamos nossa infância aqui e amamos essa cidade. Li Teresa Batista, de Jorge Amado, em russo. Nas aulas de marxismo-leninismo, cochilávamos e os professores faziam de conta que não percebiam. Você vai ficar para ver o Papa? Ele anda de Renault. Já nosso patriarca passeia de Bentley. Espero que o bom exemplo frutifique”.

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“Não, o Betinho Asfora, pernambucano, meu colega de turma do Instituto Rio Branco, foi embaixador em Tbilisi, Georgia, não em Erevan. Aqui estou eu há três anos. Ele foi para a África do Sul para ficar mais perto do Brasil. Sim, é verdade, servi em Pequim e acho que tenho uma vaga lembrança do senhor por lá. Estou aqui há três anos e o pior da adaptação já passou. Minha esposa é filipina e estamos gostando de viver na Armênia. Eles são muito calorosos. O que eu mais lamento é que quase não cheguem brasileiros a Erevan, salvo um ou outro jogador de futebol. Dezenas de milhares vão à Turquia. É o poder das novelas, sei lá. Marquei há pouco tempo reunião para um fabricante gaúcho de ônibus, mas eles já cancelaram a visita pela terceira vez. Isso não se faz. Então vieram os chineses e ofertaram ônibus usados gratuitamente para a frota da capital. É assim que eles criam laços. De produtos brasileiros, chegam aqui uns quarenta milhões de dólares ao ano, especialmente frango e carne bovina. Já eles, os armênios, nos vendem apenas oitocentos mil dólares de molibdênio. Com isso, considero meu posto como superavitário em trinta e nove milhões de dólares, o que quer dizer que estamos no lucro. Recebi instruções da Chancelaria para dizer não. Não a verbas, não a declarações políticas sobre nossa situação interna, não a comentários que interfiram na agenda dos países vizinhos. Aliás, o senhor tem um cartão de vista?”

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