Les faux monnayeurs. É o título de um livro em que o escritor francês André Gide faz duras críticas à hierarquia da Igreja Católica do seu tempo. O rótulo me ocorre agora, com a leitura do artigo do Senador Cristovam Buarque – Esquerda e “Exquerda” – publicado recentemente em nossos jornais. E cabe bem àqueles a quem é dirigido.
O Senador é um exemplo para todos os políticos do país – proclamado até pelos poucos que a ele podem equiparar-se – e tem sido incansável em sua luta pela educação, pela moralidade e por um desenvolvimento includente e não predatório. Pode cometer equívocos, e, na modesta opinião deste seu amigo, o fez, recentemente: ao não antecipar sua posição final no julgamento da admissibilidade do “impeachment” da Presidente deposta, e ao aprovar a manobra vergonhosa do “fatiamento” da pena de perda do mandato e dos direitos políticos, contrariando o claro texto da Constituição da República. Mas, nos dois casos, tais equívocos não resultaram em danos à sociedade, apenas em algum desconforto para ele próprio: no primeiro, foi alvo de ataques dos dois lados em disputa; no segundo, teve que explicar-se, invocando as motivações éticas e humanitárias da sua posição. De qualquer modo, é inquestionável que sua trajetória de vida pública tem sido límpida, impecável, olímpica. E é em sua homenagem que repercuto aqui o seu trabalho, explorando o tema.
O Senador começa por revisitar o conceito de esquerda, no quadro das profundas transformações da sociedade do século XXI, em relação à do século XIX. E restaura os seus querigmas: a fraternidade, a solidariedade, a motivação moral na chamada “vita activa”, a meta de um futuro de saciedade para todos, sem exploradores nem explorados. Confrontando essas concepções com a postura dos que, sem ver o mundo mudar à sua volta, repetem hipocritamente antigos “slogans” e cuidam apenas dos seus interesses corporativos e pessoais, conspurcando o ideário e enxovalhando as velhas bandeiras do socialismo, classifica essa contrafação com um neologismo: “exquerda”.
No caso específico da Proposta de Emenda Constitucional nº 241, que restringe os gastos públicos, permitindo apenas a sua atualização monetária anual, referida por ele como “a PEC do óbvio” – pois ninguém pode gastar mais do que ganha, uma vez esgotada a capacidade de endividar-se – Cristovam verbera a atitude dos que a combatem, com o falso argumento do prejuízo às áreas de educação e saúde. Muito pelo contrário, observa ele, no quadro de uma soma de recursos estável é que se pode verificar – e cobrar – o cumprimento da prioridade que todos proclamam para esses setores. Não se trata de “aumentar” dotações, a serem mal pagas com moeda corroída pela inflação, mas de remanejar, para a área prioritária, recursos de áreas não prioritárias, como publicidade, mordomias, viagens, privilégios, suntuosidades.
Para a administração pública brasileira, chegou a hora da verdade. Sob pena de descrédito internacional, de insegurança para os empreendedores e de frustração para os assalariados, que veriam reduzir-se o seu poder de compra com o retorno da inflação, não pode o Governo Brasileiro agir irresponsavelmente, como tem feito por tantos anos. Do professor Ignacy Sachs, polonês de origem, brasileiro de coração e naturalizado francês, ouvi uma expressão designativa do tipo de moeda que tivemos nos tempos anteriores ao Plano Real, e que agora nos arriscamos a voltar a ter: “monkey money”.
Alertemo-nos, portanto, contra os pregoeiros de soluções simplórias, cujo vezo é tergiversar, escamotear a realidade e abstrair circunstâncias objetivas, sem qualquer preocupação com a propositura de alternativas viáveis. Vendedores de ilusões, têm como único objetivo desgastar o Governo, no vão propósito de voltar ao poder, de que tanto abusaram, ao longo de treze anos.
É de se esperar que os cidadãos ingênuos contra quem tentam praticar essa verdadeira fraude, em algum momento iluminado do futuro, venham a repudiá-los. São moedeiros falsos.
Clemente, esplêndido no conteúdo e impecável na forma. A gente sai do artigo melhor do que entrou. E não é essa, no dizer do crítico, a marca de fábrica da genuína obra de arte literária?
É isso mesmo, dizem-se de esquerda, mas, após um período de governo lamentável, tentam agora torpedear as iniciativas saudáveis para o país, como essa PEC, agora 55. PEC que, na sua simplicidade einsteineana (disse-o meu amigo Carlos Osório), é uma peça não só de habilidade técnica, mas também de astúcia política. A briga contra as vinculações de despesas à receita é histórica, vem da Constituição. As resistências (corporativas) a sua derrubada, tamanhas, que tudo o que se conseguiu nesses quase 30 anos foram as repetidas edições da DRU, que liberavam parte da receita. A primeira, de 1993, foi parte essencial da engenharia do real. Pena que poucos se lembrem disso: sem a DRU, que permitiu o miniajuste fiscal que acompanhou a decolagem da nova moeda, as coisas teriam sido mais difíceis.
Pois bem, a PEC “do Teto” fez a desvinculação (sobraram os fundos constitucionais). E talvez pelo apelido ninguém discutiu, só se falava em teto, teto.
Ficaram os pisos para educação e saúde, mas como percentuais da despesa total. E para mim esse novo arranjo deveria integrar era o permanente e não o transitório da Constituição.
Quando a turma do contra sustenta que a demanda por educação e saúde cresce o tempo todo, com o crescimento da população, e que, em 20 anos, os recursos serão mais do que insuficientes, ela está certa. O que ela se recusa a ver é que a hora é de sair do buraco. E para isso, os 20 anos são um horizonte necessário. O próximo governo, que sairá da costela deste (quem acredita que a esquerda, ferida pela corrupção e destroçada pelas urnas municipais, terá tempo de se reagrupar antes de 2018?), não terá como mexer nesse prazo. Terá, sim, de se atracar com a tarefa vital que tanto seduz meu amigo Tarcísio de reduzir as iniquidades intra-governo. Dar mais eficiência à gestão pública. E puxar os estados e municípios a fazer o mesmo. A situação deles é pior: não emitem títulos da dívida (quem os compraria?) e não dispõem de Banco Central. Os governos futuros que façam o que lhes couber. E uma coisa é certa: uma PEC “lava” outra…
De modo que o “exquerdista” é bem bolado. Se bem que aqui eu ache que uma crueldadezinha não faz mal e pode até acordar alguns. Esquerda é generosidade, direita, egoismo–reza o lema romântico que guiou nossa geração. Mas depois se viu que generosidade não basta: um mundo futuro melhor tem de resultar dela. E se passou a falar em progressistas, que querem esse futuro, e reacionários, apegados ao presente ou, se este lhe for adverso, a volta a uma idade de ouro passada. Olhe agora esse pessoal reunido hoje em assembleias nas universidades, sindicatos… premeditando greve geral e note: eles querem de novo o velho, o que passou e trouxe o Brasil até esse buraco. Então, se de esquerda, eles são reacionários de esquerda! Já os que apoiam a ideia de juntar os cacos e seguir adiante são a turma da direita, os terríveis neoliberais. Sim, mas eles se batem por um mundo melhor. Para reativar as máquinas que estão aí, paradas, e os 2,5 milhões de braços habilidosos, cruzados nos últimos três anos. Por que não lhes chamar então de progressistas de direita?!
Fico por aqui, Clemente. Exagerei. Mas a culpa foi sua de nós brindar um texto tão oportuno e tão belo. Lembranças a Paulinha. Abraço.
Meu caro Clemente
Alviceras! Você e Cristóvam reescrevem a lógica política que tem servido para manipular o quadro ideológico do atual cenário brasileiro,colocando em seu lugar o posicionamento fascistoide daqueles que investem na repetição sistemática da mentira como estratégia de dominação de mentes desatentas.
Amigos, agradeço os comentários. Vocês desenvolveram o tema, que eu apenas aflorei.
Belo texto. Espero que ajude a isolar o pessoal nos dois extremos do espectro político. Precisamos é de centro e de políticos centrados, com foco, não apenas centrados em cuidar de suas carreiras e verbas de campanha. Aprovado o teto, a briga vai ser a da distribuição dos gastos e cortes dentro desse teto. Sem reforma da Previdência que pelo menos reduza as injustiças do sistema atual o teto desaba.
Ótimo texto, Clemente. Mais do que saudades de reler André Gide, a leitura me fez refletir sobre um dos traços mais distintivos da boa e da má fé de um ser humano: a forma como ele lida com o dinheiro alheio, seja este público ou privado.
Tendo trabalhado em áreas tão espalhadas e com culturas tão diferentes dessa vertente greco-latina de que provimos, pude constatar que, em todos os níveis, os perdulários de hoje estão a hipotecar irresponsavelmente – quando não criminosamente -, o futuro dos que virão amanhã.
É nessas horas que é flagrante o contraste entre s povos das regiões temperadas mais ao norte da Terra e os padrões vigentes nas zonas tropicais e equatoriais. É claro que temos exemplos como o de Cingapura que corroboram a exceção. Puxaste Gide, lá venho eu com Montequieu.