Clemente Rosas

Peru (Meleagris gallopavo).

Dos irmãos de meu avô paterno, Joca Viriato, Tonico e Álvaro, conheci apenas o último, que viveu seus últimos anos na vila portuária de Cabedelo, onde tínhamos casa de praia.  Já bem avançado na idade, e vendo pouco, visitava meu pai para pedir ajuda na liquidação dos seus negócios.  O principal deles foi a venda de uma extensa faixa de terreno arenoso na ponta de Camboinha, entre as praias tradicionais do Poço e Formosa.  (Camboinha é hoje praia sofisticada, concorrendo com Tambaú, já incorporada à cidade de João Pessoa).  O coqueiral estava velho, já não rendia, e ele não viveria mais para desfrutar de nova plantação.

Tio Álvaro, como os outros filhos de Dona Sérvula, não era mole.  Mandou fazer, certa vez, uma porteira para o seu sítio, em madeira nobre, possivelmente baraúna, que é de origem nordestina.  Todo orgulhoso dela, descobriu, de repente, que um passante havia tirado a facão algumas lascas da madeira, sabe-se lá com que objetivo. Indignado, mas sem poder identificar e punir o predador atrevido, mandou pintar na porteira, em grandes letras vermelhas, a advertência:

BANDIDO E LADRÃO: ARRISCOU-SE MUITO!

No caso da faixa de praia em Camboinha, meu pai intermediou a venda, recusando-se a receber o lote de terreno que lhe foi oferecido, em recompensa.  E, chegando o final do ano, Tio Álvaro resolveu mandar-nos de presente um peru, para a tradicional ceia natalina.  Confiou a tarefa da entrega a um dos cabras que lhe prestavam algum serviço.

(Abro parêntesis para um breve comentário.  Nunca entendi por que um animal tão delicado e tão dócil como a cabra passou a designar, no Nordeste, seres humanos do chamado sexo forte, nem sempre exemplares.  Pois há cabras bons e cabras ruins.  Os primeiros compreendem duas subcategorias: os “cabras machos” e os “cabras da peste”, sendo estes os que topam qualquer parada, e nunca negam fogo.  Os segundos também comportam divisão: são os “cabras safados” e os “cabras de peia”, entendidos os últimos como os imprestáveis, que só merecem castigo.  Deixo aos leitores a classificação do coadjuvante desta narrativa).

O entregador, com olhos avermelhados e a habitual “cara de leão” dos cachaceiros, chegou ao seu destino com o peru debaixo do braço, e apressou-se em passá-lo às mãos de quem primeiro lhe apareceu no terraço da casa: eu, menino de uns dez a doze anos naquela época.  Não me lembro se me disse quem o mandava.  Simplesmente, recebi a nobre ave e soltei-a no quintal, onde ficou sem ser notada, esquecendo de avisar a minha mãe.

No dia seguinte, em visita, o autor do presente pediu a meu pai confirmação do seu recebimento.  E meu pai:

Que presente?  Um peru?  Não recebi nenhum aqui!

Tio Álvaro retirou-se, carrancudo, voltando algum tempo depois, o cabra alguns passos à sua frente, ele atrás, como se tangesse um garrote manso.

– Foi aqui que você entregou o peru?

– Foi, sim senhor.

– Entregou a quem?

– A um menino.

– Que menino?  Conte essa história direito, rapaz! – já se enfezava o Tio Álvaro.

Para sorte do entregador sob suspeita, eu apareci no terraço, inesperadamente.

– Foi esse aí, seu Álvaro.

E eu confirmei o fato, na santa ingenuidade infantil, nem nenhuma noção do problema que poderia ter causado.

Tudo esclarecido, o peru foi identificado, e, nos estilos, sacrificado para a ceia de Natal. Com aproveitamento da carcaça, no dia seguinte, em uma especialidade da nossa mesa, louvada por quantos forasteiros já a degustaram: a “feijoada de peru””.