I must go down to the seas again, to the lonely sea and the sky And all I ask is a tall ship, and a star to steer her by
“Sea Fever” – John Masefield
Enfim, vencido pela febre do mar de que fala o poeta inglês, e a convite de um amigo velejador, voltei a singrar as ondas, em um barco esbelto e branco como um cisne. Tive ainda uma motivação adicional: o destino era a Praia Formosa, minha querência, onde, ainda parodiando verso de John Masefield, cajueiros e mangueiras florescem, “e o ar é como vinho”.
Minha experiência anterior era apenas com pequenas embarcações primitivas – canoas e jangadas – mas nunca tive problemas com o enjoo de mar. Posso dizer que enfrentei bem os dois maiores testes nesse campo: navegar em navio baleeiro, perseguindo as suas presas, e passar uma noite em alto mar, num bote de pesca fundeado. Quem sair fagueiro dessas situações, pode dizer que é do mar.
Partimos de Itamaracá à primeira luz da manhã, usando o pequeno motor de popa que serve para manobras de atracação, pois assim o exigia a completa ausência de brisa. Mas algum tempo depois os ventos chegaram, e a calmaria se desfez. Da metade para o fim da viagem de quase dez horas, eles sopraram com mais força, a princípio do Leste, em seguida do Sul, de onde vínhamos. E tivemos, na plenitude, o encanto da navegação a vela: sem ruído, sem trepidação, sem cheiro de combustível, em doce intimidade com o mar.
Registro apenas uma limitação. Os estais necessários à fixação de grandes mastros, como o do nosso barco, limitam o ângulo de abertura da vela, reduzindo a captação do vento de popa, que recebemos em boa parte do percurso. É por isso que embarcações desse tipo velejam melhor com ventos ”de través”. E eu estava acostumado a ver jangadas e botes, com vento traseiro, de velas abertas quase em ângulo reto com o seu corpo, em desafiadora velocidade. O extremo se dava quando um bote de duas velas, em manobra imprudente, mas sedutora, punha uma vela de cada lado, e quase voava, “esgalhado”, como um garapirá, a ave marinha tão conhecida dos pescadores de Formosa, que não precisa bater as asas para manter-se nas alturas.
De qualquer modo, navegamos muito bem, mantidos a sanduíches e cerveja, os dois donos do barco revezando-se no leme, o convidado ajudando em pequenas operações de ajuste de equipamentos. E recordei a condição dos tripulantes das jangadas, que se limitam a dois, mestre e proeiro. Ocasionalmente, porém, os jangadeiros podem aceitar um velho marujo, em fase de aposentadoria, como “bico de proa”. Era a minha humilde condição.
Na placidez do mar, que se diria “de almirante”, tivemos poucas surpresas: meia dúzia de tartarugas – de aparição tão brusca e rápida que só podem ser vislumbradas por um dos tripulantes de um barco – e um grande plástico preto. (Este, consolamo-nos pensando, não será confundido com uma alga marinha pelas nossas discretas amigas). E, na linha da costa, a distante visão das falésias, que predominam no litoral sul paraibano, criando a ilusão de estarmos próximos do Cabo Branco, que só se revela bem depois. A mesma sofrida ilusão que tive, quando, trinta anos atrás, fiz a pé o percurso Ponta de Pedras – Formosa, em dois dias de longa caminhada.
Algum desconforto? Sem dúvida. Os banquinhos de madeira ou plástico, usados por tanto tempo, machucam. O deslocamento sobre o barco exige esforço muscular para o equilíbrio, e o sol não dá tréguas. Mas a sensação da chegada, como a dos caminhantes que alcançam o topo das montanhas, compensa tudo.
No trecho final, quando cortamos obliquamente a grande enseada do Bessa, para passar ao “mar de dentro” da Praia do Poço, protegido pela linha de arrecifes que vai dali até o nosso destino final, dispensamos os instrumentos, e assumi a honrosa condição de proeiro. E assim atravessamos a Ponta de Campina, o Poço, e a Ponta de Camboinha, ancorando em frente ao simpático hotelzinho onde os amigos passaram a noite. Não vimos a Areia Vermelha à nossa direita, pois as marés cheias a encobrem. Faltou-nos a cereja do bolo.
No dia seguinte, acordei cedo para ver os companheiros partirem de volta. E lhes desejei as boas graças de Eolo, para que os ventos lhes fossem favoráveis, e o comando de Netuno, para suavizar o seu caminho. E ainda, para terminar poeticamente como começamos, ”quiet sleep and a sweet dream when the long trick’s over”.
Agora que fiquei sabendo dessa sua vocação de velho lobo de mar, como se já não bastassem as destrezas a cavalo, fico curioso por saber um dia como foi sua experiência a bordo de um baleeiro.
Imagino que tenha sido num daqueles pesqueiros japoneses de Cabedelo, na sua querida Paraíba. Já li relatos de pesca à baleia (quando o mar fica vermelho), mas nunca de alguém que eu tenha conhecido.
Em que época do ano eles pescavam? Quanto tempo durou sua experiência? Conseguiram caçar alguma nesse dia? Como se puxa o animal arpoado até o costado da embarcação? Quanto tempo leva a operação?
Abraço
Que lindo! Quem sabe um dia eu consiga por no papel a minha experiência em um veleiro pequeno no Kategatt, entre Suécia e Dinamarca, quando um temporal inesperado quase jogou os 4 “tripulantes” no mar gelado, e um só sabia de verdade velejar, o alemão, pois o resto, esta germano-brasileira, mais um dinamarquês e uma uruguaia, de vela não sabiam nada. Só me lembro de medo, medo, + medo, + medo. E tudo cinza, baixa visibilidade.
Fernando,
Vou satisfazer, resumidamente, a sua curiosidade. Foi mesmo num pesqueiro japonês que embarquei (meu cunhado, já falecido, foi diretor da COPESBRA, a empresa deles, e até um livro escreveu sobre baleias). A saída do ancoradouro de Costinha, do outro lado da embocadura do Sanhauá, era na alta madrugada, chegando-se ao ponto de passagem dos cetáceos por volta de 11 horas. A pesca só se dava em alguns meses do ano (acho que no inverno), quando a migração anual das nossas vítimas para as águas mornas do Nordeste ocorria. A expedição diária se encerrava ao final da tarde. Avistada a caça, a perseguição e o abate não demoravam muito, apenas meia ou uma hora. No dia em que fui, o artilheiro – a pessoa mais importante do barco, mais talvez que o comandante – havia brigado com a namorada cabedelense (diziam) e errou vários tiros. Só se conseguiu abater uma, podendo o navio trazer até quatro, duas de cada lado do casco. Depois do primeiro tiro bem sucedido, com muito sangue no mar, a baleia ainda nada algum tempo, retesando a grossa corda do arpão, cuja ponta explode dentro do seu corpo, espalhando as farpas para todos os lados. Há um segundo tiro, se bem me lembro, e ela recebe uma injeção de gás, para não afundar, como às vezes acontecia no tempo dos arpões de mão, inutilizando todo o trabalho dos heroicos caçadores tão bem descritos por Herman Melville. É amarrada, pela cabeça e cauda, do lado do navio, barbatanas cortadas para não atrasar a viagem, e arrastada até o ancoradouro e a rampa de tratamento. Naquele tempo, a carne era pouco valorizada, e cada trabalhador podia levar o seu bocado para casa, aproveitando-se principalmente o couro, com a camada de gordura que produz o óleo.
A razão de constituir um bom teste para o enjoo de mar é que, na perseguição da presa, o pequeno navio converte-se numa verdadeira montanha russa, escalando vagas em todas as posições. Além disso, o cheiro de óleo impregna tudo, e a descida para o ambiente fechado do refeitório é particularmente nauseante.
Nada disso se compara, é claro, com os tempos da pesca artesanal, quando as viagens duravam anos, e a baleia era esfolada presa ao navio, com as “plataformas de cortar” baixadas e o arpoador – pagão, como de regra – preso por uma corda na cintura, enfiava o gancho em cada retalho de couro cortado, empurrando com os pés as cabeças dos tubarões que vinham buscar os seus pedaços. O forno para cozer esses pedaços e obter o óleo ficava no centro do barco. (Quem não leu Moby Dick deve fazê-lo o quanto antes).
Teria muito para contar ainda, mas não quero cansar nossos leitores. Grande abraço e obrigado pelo interesse em minhas despretensiosas histórias.
Beleza, Clemente, trepidante mesmo. Lembrei de um amigo catalão que se meteu a macho numa sardinheira e saiu do Cantábrico com a valentia reduzida a pó e, desculpe dizer, ilhado num mar de vômito.
Voltando às baleias, li alguma vez que as tripulações temiam os movimentos enraivecidos da cauda quando arpoadas. Dadas as desproporções de tamanho, o barco ficava vulnerável à fúria da dor.
Como o ser humano é também uma mistura de engenho e crueldade, o que faziam os artilheiros de antanho? Pegavam o filhote e o amarravam no casco da embarcação. Ora, qualquer movimento hostil dela podia castiga o cachalote.
Então, banhada em sangue e dor, ela se resignava à morte sem luta. Gostei muito de seu relato, Clemente. Foi um bônus inesperado que veio com o produto principal. Sempre quis fazer esse programa de Cabedelo, mas não tinha idade.
Helga,
O mar tem mesmo um poder surpreendente de atração. Até quando provoca medo, como no seu caso. Não fosse assim, o poeta John Masefield não lhe teria dedicado tão belos versos, apesar de, no caso dele, e no seu em seus tempos de Europa do norte, tratar-se de um mar gelado e cinzento, nada amistoso, ao menos para nós, tropicais.
No meu Nordeste, Helga, o mar é sempre azul e acolhedor, apenas encapelado umas poucas vezes. Azul esverdeado em pequenas profundidades, azul escuro, bem escuro, nas grandes. E suas águas são cálidas, como o coração dos que lhe são íntimos. Você não teria medo dele.
Caloroso abraço.