O Café Esperanto
Se você está na terra de Ludwik Zamenhof, o linguista que tentou desfazer o nó da Torre de Babel e criou o Esperanto – a sonhada língua universal -, nada mais esperável que se sinta tentado a almoçar no café do mesmo nome, na verdade um lindo restaurante localizado na praça central de Bialystock, próximo à Basílica imponente, como costumam ser os templos poloneses. No Esperanto, para não variar, o serviço é lento e algo displicente, apesar do ambiente acolhedor e dos cartazes promocionais de peças de teatro, o que denota se pretender um local destes que os americanos chamariam de high end.
Pois bem, amigos, lamento informar que, a exemplo do idioma que o batiza, o café Esperanto fica aquém das expectativas e, convenhamos, não vinga. E, no entanto, por razões bem prosaicas. Pois a comida até que é boa, embora não seja ótima. O creme de brócolis com queijo derretido estava gostoso, mas faltava um tantinho de sal e a marca da personalidade do chefe. O pato com maçã assada também estava suculento e os pirogi eram de qualidade, embora meio anódinos e sem pegada. Até a original mousse de baklava era correta na execução, mas não empolgou.
É claro que eu não tinha expectativas transcendentais mesmo porque não estava pagando nenhuma fortuna. Tudo isso custou o preço de um hambúrguer em alguns lugares de São Paulo. A questão é que o cozinheiro ainda não pegou a mão. É como um escritor previsível; uma amante que não ousa; um discurso de clichês. Mas ele vai chegar lá. Essa foi minha experiência no Esperanto. Que me perdoe Zamenhof. E até, o Dr. Sabin, por tabela, também filho da terra. Ao reler essas anotações, contudo, fiquei me perguntando. Se tudo estava só mais ou menos e eu não deixei uma côdea de pão no prato, imagine se estivesse bom. Sim, é isso mesmo o que você deve estar pensando: deve haver algo de errado comigo também.
Lodz, croquis de um cidade
Se você é de São Paulo, pense primeiramente numa área de velhas fábricas desativadas entre o Bom Retiro e a Barra Funda de uns trinta anos atrás. Dote-as, então, de uma fachada meio enegrecida pela sujeira e manchada pela fuligem, como o Harlem de New York da mesma época. Para o quadro ficar mais verossímil, apedreje a vidraça de umas poucas janelas intactas e imagine blocos de indústrias agrupados às dezenas, a maioria da estatura de um velho cotonifício da Moóca.
Mas vamos adiante. Peço-lhe agora distribuir essas áreas em distritos e separá-las por imensos parques verdejantes e, vale dizer, muito acolhedores. Faça, por fim, de uma grande artéria o seu cartão de visita e revitalize as dezenas de becos que começam nela, isentando de imposto os moradores que fizerem benfeitorias nos imóveis antes depauperados. No meio do casario compacto que se forma em desalinho em todas as direções, tolere então uns barracos precários onde dormem mendigos, imigrantes clandestinos e moradores de rua.
Agora vamos a um detalhe evidente da tarde-noite da sexta-feira. Espalhe na porta dos bares uma chusma de alcoólatras quase irrecuperáveis. Refiro-me a esses que irão ao chão antes do escurecer, encharcados de destilado. E então, rasgue a cidade por enormes avenidas – do traçado que os russos chamam de prospekt – onde os carros passam zunindo e você se sente pequeno e vulnerável. Por fim, construa muitos quilômetros de ciclovias largas, quase tanto quanto as calçadas.
Pois bem, aqui você tem um quadro bastante fidedigno da cidade de Lodz, na Polônia. Bem-vindo, portanto. Posto assim, parece que é uma má pedida. Mais do que Velha Europa, é Europa velha – o que é bem distinto. Mas não desanime porque a cidade pouco a pouco o cativa. Tem pulsão, energia, identidade e cultura. Nas entrelinhas, o observador mais atento percebe uma sociedade irreverente e alternativa. Deve ser sim um bom lugar para se viver, apesar dos tenebrosos bosques escuros
Os bêbados de Lodz
Nas adjacências da imensa rua Piotrkowska, inclusive no trecho agradável em que circulam só pedestres, se abrem pequenas ruas que podem ser o que chamamos em São Paulo de vilinhas, ou seja, de becos sem saída, onde uma dúzia de famílias leva uma vida abrigada do fluxo da artéria principal. No caso brasileiro, muitas vezes são protegidas por cancelas e guaritas. Na Polônia e na Rússia de outros tempos, um porteiro mal-humorado e corrupto passava o ferrolho na grade a determinada hora e cobrava pedágio pela passagem, pelo silêncio ou pela inconfidência. Hoje, esses becos adjacentes abrigam sobrados pintados e bem conservados que servem de ateliê, brechó, café e residência. Outros tantos, muitos mais, ainda estão em escombros, como se os últimos aviões de bombardeio da Luftwaffe tivessem sobrevoado a cidade mês passado. São, portanto, muitas as áreas nobres que se prestam à revitalização. Lodz deve ser uma boa opção de investimento.
Mas é ali perto, onde os becos fedem a urina que o passante desavisado pode se ver em maus lençóis. Isso porque ele logo se verá cercado por meia-dúzia de feições hostis a avaliar possibilidades. Das mais atraentes às menos, segundo a ótica deles. Pela ordem: o cara é um trouxa desavisado que se perdeu e está pronto para ser depenado. A segunda pode ser: é um bêbado como nós, quem sabe à procura de droga. Por fim, é um policial civil no rastro de algum dos nossos. Em qualquer hipótese, eles se sentem compelidos a chegar perto. Se for um otário, podem se locupletar com algum dinheiro e pagar a farra. Se for um dependente, eles sempre vão acolhê-lo e encaminhá-lo ao primeiro boteco decadente das adjacências. Se for um “tira”, a cautela se impõe, mas como já estão muito embriagados, a censura despenca, e se achegam para afetar uma normalidade que não existe. Quem sabe não ganham algum zlot dando uma pista falsa.
Pensando bem, tudo isso é café pequeno quando comparado com a truculência das ruas do Brasil. Na Polônia, se um sujeito desses aparece com um revólver na cintura, ficará anos na cadeia. No Brasil, se ele age desarmado, perde o respeito dos comparsas e dura pouco. Enfim, os bêbados daqui não são necessariamente delinquentes, mas delinquem para bancar a dependência. Assemelham-se no perfil psicológico a personagens de romance russo. Normalmente, deixo que falem, mas não permito que se aproximem muito. Observando-os a curta distância, porém, se percebem as escoriações da vida. Supercílio estourado. Pontos recentes na testa. Brechas na dentição. Hematomas. Arranhões. Nariz vermelho. Roupas puídas e o terrível hálito cetônico de quem bebe vodca barata há anos e não come uma fatia de pão há dias. Mas tem um detalhe que há anos me chama a atenção: sempre há uma mulher. Decadente, ela também, mas nem tanto.
Muitas vezes, fico sentado à distância tentando entender como se opera a dinâmica do grupo. Se eles, os alcoólatras, ficam à beira do tombo na calçada e ensaiam brigas entre si – que começam com tapas e chutes amigáveis e uma hora o caldo entorna, como acontece com crianças -, a mulher mantém sempre alguma sobriedade. Bebe, é claro, mas, se vista fora daquela roda, poderia enganar bem, dando a impressão de ser alguém menos vulnerável à embriaguez patológica. É ela que sinaliza a passagem do padre; a vinda de uma patrulha da polícia; organiza o rateio para a bebida e ri mais alto das piadas pastosas que eles parecem contar. Debruço-me sobre esse agrupamento como um cientista faz com o formigueiro. A conclusão mais evidente é que ela, a mulher, tem um papel de moderadora na confraria. Na esquina da Milionowa, na frente da igreja, tem um grupo deles que não sai da parada do bonde. Todo dia salto do 3 ou do 6 e vejo a cena do banco da praça. Lá estão eles rodopiando, rodopiando – até cair. À distância, já me acenam, mas não devolvo o cumprimento. Na minha última noite na cidade, vou comprar uma vodca e lhes dar de presente ao saltar do bonde 3. Ou do 6. Depois, sumirei.
Página de diário – Primeiro domingo de maio em Pozsnam
Apesar do calor inusitado, fui solidário à alegria dos poloneses que há mais de seis meses não viviam um dia assim. Foi, portanto, um domingo especial. Tanto na rua quanto aqui no meu quartinho do hotel Ikar. Lá fora, se encerrou a farra cívica da semana em que se comemorou a promulgação da Constituição e os doze anos de adesão ao clube europeu. Como eles são nacionalistas. Só vi os catalães levar o patriotismo a tal extremo. Mesmo civis batem continência diante dos monumentos. Exagero.
Mas este longo domingo foi sobretudo o dia em que as crianças do país fizeram a primeira comunhão e se vestiram solenemente, com longos hábitos marfim, como se fossem pequenos sacerdotes ordenados. Algumas, depois se maquiaram de diabinhos. Que estranha tradição. Os pais estavam de terno e gravata. As mães estreavam vestidinhos leves e mostravam à luz do dia colos e ombros que não viam o sol desde setembro último. Haja hidratante à cabeceira na hora de dormir. Algumas eram lindas.
Esse domingo foi também o dia da maratona de Posznam e me deleitei em ver os corredores sob minha janela. Uma moça do comitê organizador disse que poucos conseguiriam fazer o trajeto todo por causa do sol. Certamente menos do que nos anos anteriores. Da calçada, as pessoas aplaudiam fervorosamente. Acompanhei o cortejo, também bati palmas e berrei palavras de estímulo. Na falta de saber fazê-lo em polonês, gritei gambatte – em japonês. É mais vibrante.
No almoço, bebi mais cerveja do que a prudência recomendava, mas menos do que o calor pedia. Animei-me com a conversa de dois ucranianos da zona de Chernobyl e um deles me contou sobre como perdeu o primo devido aos efeitos da radiação. Na verdade, o domingo para mim é o primeiro dia útil da semana. É dia de trabalho intenso para que, com tudo em ordem, eu possa curtir a vida da semana – que é a parte mais longa e agradável. Aos domingos, não sou de muito papo. Mais uma esquisitice de longa lista.
Assim, tinha uma pilha de coisas a fazer, se queria chegar a São Paulo em condições de testemunhar dias trepidantes. Ademais, terei que enfrentar compromissos em quatro capitais até o fim do mês. Pensando bem, se eu não tivesse me isolado por aqui e apenas tivesse me deixado levar pela vida, não conseguiria ter produzido grande coisa. Teria perdido imensa energia com os embates políticos brasileiros. Pensei em tudo isso durante o almoço solitário, mas feliz.
Apesar das casas lotadas pelas famílias em confraternização, consegui me aboletar no restaurante Wiejskie Jadlo, ao lado da grande praça da Cidade Velha. Adoro ver a vida dos outros, especialmente em momentos intensos em que a alegria crua mostra a face. Embalado, encomendei – a despeito do calor – a deliciosa sopa de repolho com salsicha defumada que vem servida num pão do tamanho de uma nádega – daquelas arrebitadas. À medida que a tomava, arrancava uma lasca torradinha por fora e molhada por dentro. Uma maravilha da cozinha rústica dos campos. Depois pedi um joelho de porco grelhado, acompanhado pelos chamados pastéis da Silésia – uma massa ao vapor com cebola frita e recheio de batata. Um cardiologista que visse a cena me chamaria de suicida. Tomei uma dose de vodka Viborowa para diluir a gordura e, como tenho juízo, abdiquei da sobremesa. Então pedi uma última caneca de chope.
No caminho para o hotel, comprei clementinas da Espanha e só saí do quarto à meia-noite para passear no ar fresco com meu cão imaginário. Mas então tinha feito tudo o que devia, estava em dia comigo mesmo. Agora já entrei na madrugada da segunda-feira, relendo um belo livro. Mais tarde, tenho um trem para Varsóvia. Lá, já sei, vou atrás de outras reminiscências. Vou trabalhar, jantar na casa de Artur, arranjar tempo para ver as ruas que me obcecam e voar para a Suécia. De onde, então, volto para o Brasil.
Fim do encanto
Às vinte horas locais aqui em Posznam, duzentos quilômetros a leste de Berlim, neste 7 de maio do ano da graça de 2016, a Europa acaba de perder muito de seu encanto para mim. Pois eis que, culminando uma semana em que se ensaiava semelhante tragédia, o termômetro chegou à casa dos 25 graus centígrados. Ontem à noite, já tinha deixado uma fresta de janela aberta, o que ainda não tinha acontecido esse ano. Era um prenúncio do calor que viria.
Pois bem, hoje pela manhã já acordei com a sensação de que a morte chegara. Isso porque uma claridade desumana invadiu a face leste do hotel Ikar – uma relíquia de Guerra Fria, mas habitável – e o suor me levou direto à ducha fria porque pelo menos morreria limpo e refrescado. Mas não foi hoje ainda que morri. Com a roupa mais leve que tinha, caminhei até a praça do Mercado e fui andar pela feira livre para refrescar pelo menos a vista.
Depois, fui tomar cerveja, mas não ajudou muito. Para não dizer que o dia foi perdido, pelo menos vi a casa onde Napoleão dormiu a caminho da malfadada campanha da Rússia. Aqui também nasceu o Marechal Paul von Hindenburg que, quase nonagenário, entregou o poder a Adolf Hitler, numa hora em que poderia ter feito bom uso da pistola e estourado os miolos do psicopata e, assim, abortado uma guerra. Mas como ele poderia saber? Amanhã mesmo faço minha mochila e sigo para Varsóvia. Quem precisar de mim na Europa até novembro, aviso que cobro bandeira 2 e insalubridade. Já para a Patagônia, África do Sul e Terra do Fogo, vou de graça até setembro. Tenho horror ao calor. Em outros tempos, isso era temperatura para fim de junho. Agora, já bate forte na primeira semana de maio. A depender de minha vontade, viveria sobre uma banquisa de gelo.
Amigo Fernando,
Como sempre, suas narrativas tão bem detalhadas e humoradas, nos fazem transcender, a ponto de sentirmos o frio – ou calor – e os aromas das maravilhas da culinária donde você estiver.
A capacidade de síntese e, o permanente olhar curioso sobre tudo e sobre todos, nos colocam na “cena do crime”, como verdadeiros involuntários cúmplices de suas andanças, história e vida.
Abraço grande,
Hélio,
Fico contente que o amigo tenha sido o primeiro a comentar esse texto (talvez até o último e o único). Como há de ter constatado, o relato passado versava sobre a Polônia onde até a paisagem falava iídiche, como eu disse. A descrita acima é todo o contrário, se podemos dizer assim. Resvala uma Polônia com cores menos cosmopolitas, uma Polônia de raiz na acepção deles.
Abraço,
Fernando
Diferentes leitores, diferentes reações – é claro. O primeiro relato começa com cara de guia turístico de restaurante, mas depois fica divertido pelas comparações com a língua esperanto e outras. O segundo, um croquis espantoso que o melhor dos urbanistas não conseguiria fazer. No terceiro, o antropólogo examina um grupo de “nóias” locais, que parecem ser menos perigosos que em S.Paulo. Acho que Roberto da Matta não faria melhor. No quarto relato,um dia de trabalho do assessor/escritor que se espanta divertido com o componente nacionalista e católico da Polônia. Mas já começa a reclamação final, quase advertindo que mulheres em zona tropical ou temperada de temperatura acima de 24 graus centígrados não têm a menor chance com o escritor se não tiverem ar condicionado. Só as finlandesas – na Finlândia. A “carpintaria”, neste texto, é menos sofisticada que a do conto sobre Polônia publicado na “Será?” de 26/05/2017. Ou nâo? Aí já estou me metendo a crítico literário. E apesar do meu respeito e admiração pela competência linguística de Fernando Dourado: não tem algo truncado na primeira frase do segundo parágrafo do relato os “Os bêbados de Lodz”? “Se encontrará ver”?
Sabe que você está coberta de razão, Helga? E digo mais: saí num super lucro nessa história toda, já que você foi toda elogios para com mais de 3/4 partes do longo texto. Isso é muito bom.
Ainda que de fininho, escapei da labareda da fogueira que mais temia. Qual era? Que você me acusasse de buscar o aplauso fácil em mais um texto sobre as reminiscências polonesas, depois do sucesso do último.
Eu próprio me vigiei bastante quanto à tentação (o que não me impediu de incorrer no pecado). No frigir dos ovos, estou satisfeito até agora com um comentário que resultou muito benevolente para seus padrões. Obrigado,
Fernando
Obrigada por este chistoso e interessante artigo, Fernandito, gostei. De Esperanto, parece que foi o cardápio que tinha esta vertente, uma rica mestiçagem. Isso lembrou-me dum cara da UE que conheci, o Diego Mariani, que escrevera um livro em “Europanto” ou seja nos 11 idiomas que se falam no hemiciclo.Um delírio! Não conheço a terra do meu avô, mas acho que encontraste a palavra certa para qualificá-la: velha, por isso não me atrai muito. Talvez eu seja ainda “novinha” para ir. Ver-se-á quando fizer 90 anos!
Querida Pascale,
Tens toda razão de te manter à margem do circuito geriátrico. Assim fazendo, consegues manter esse tremendo vigor mesmo depois dos 30 anos. É todo o contrário do que faço que preferia uma boa morte a passar um par de dias na Disney. Fico feliz que tenhas captado a analogia desse mish mash culinário com a língua híbrida que é o Esperanto (nunca conheci um falante da língua que não fosse seriamente perturbado). Beijo,
Fernando