Pedro Gabriel

Cena do filme Sociedade dos Poetas Mortos.

Nosso Fernando Da Mota Lima tinha beleza pulsando dentro do peito. Era indivíduo saltado de um conto de Guimarães Rosa, como um personagem da margem terceira: “homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação”. Esse era o nosso Fernandão.

Foi a pessoa mais doce que conheci: com sua pena molhada duplamente ora na inteligência cultivada por sua voraz leitura, ora no seu úmido coração afofado pela a generosidade que um corpo incansavelmente doente ofereceu ao seu espírito em substituição ao ressentimento que sempre desconheceu.

Ocorre que esse pai ordeiro e cumpridor, formador de incontáveis mentes dessa cidade impiedosa, cansou de remar e foi tragado pelo rio que por toda vida navegou com tanta beleza e elegância. Faltou-lhe “a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro”. Faltou-lhe forças e escorregou no escuro e nós, seus amigos, não estávamos por perto para armar um foguinho de margem ou acender um solidário fósforo.

Os tempos seguiram mudando no devagar depressa dos tempos, mas teu afeto era sempre reto, constante e clássico. Estava lá, como sempre esteve. Em nossa pressa achamos que ele esperaria por mais dez anos. Que fizemos abandonando-te, Nando?

“Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação”.

Sua partida nos entristece, nos diminui a todos. Nós que o amamos sofremos o grave frio dos medos, imenso como a gratidão que pessoalmente sinto pelo enorme que sua inteligência generosa fez por minha formação intelectual e humana.

Há meses nos prometíamos uma taça de vinho, umas conversas sobre literatura e inglaterrismos. Não deu tempo, Nando… Nando, não deu tempo…

Nosso barqueiro da civilidade e do humanismo deslizou com firmeza e coragem até seu último suspiro. Na travessia de minha dor pessoal, perdi a conta de como meu mundo se alargou com a ajuda de Fernando. Foi ele quem me apresentou a poesia inglesa de quem me tornei dependente. Lemos juntos em tardes memoráveis Auden, T. S. Eliot, Keats, Tennyson. Reavivou em mim tantos outros amores adormecidos (como Donne e Whitman). Na conta dessa amizade agradeço por sua luz paciente que me ajudou a reavaliar nomes como Drummond, Mário de Andrade, Bandeira, Paulo Francis, FHC e uma meia dúzia de liberais da escola clássica sem os quais não viveria hoje. Em suma, Fernando da Mota Lima ajudou-me a povoar meu mundo com o registro de uma civilidade que me tange jamais esquecer. Rest in peace, Nando. “O Captain! My Captain!”