Não fosse o Brasil tão pouco afeito à Literatura — ou, dizendo de outro modo, fosse mais literariamente educado —, as celebrações a Guimarães Rosa nestes seus 50 anos de morte estariam pipocando e bombando nas instituições literárias e culturais do País. Rosa é o leite mineiro que a vaca não prometeu. É — para recordar uma imagem de José Guilherme Merquior a propósito de Gilberto Freyre — um jequitibá que nasceu no nosso quintal. Guimarães Rosa, mais que um grande autor, é uma espécie de fenômeno literário puro, muito embora para sempre enraizado nas fontes de nossa brasilidade.
Rosa foi, a seu modo, uma espécie de genial predestinado. De par com sua criatividade de raro fabulista, trouxe para a literatura brasileira algo absolutamente inovador: a questão da linguagem. É certo que outros o tentaram com maior ou menor grau de sucesso, mas Rosa é imbatível: nada de braçada, deixa os demais a se afogarem na espuma das tentativas. A tentação de alguns críticos foi logo compará-lo a Joyce, o que ele repelia, tachando o irlandês de ser unicamente um cerebrino. E com certeza Rosa une razão e sensibilidade, lirismo e lógica, sintetizando-os no mais alto grau. Sua revolução linguística faz do seu texto um altar em que sacrifica como pobres ovelhas negras os lugares-comuns, aos quais devota um sagrado horror.
Reza o anedotário rosiano que um certo poliglota, ao se candidatar a uma vaga de tradutor numa editora, teria dito para impressionar: “Falo várias línguas, inclusive a de Guimarães Rosa”. Humor à parte, sabe-se que o próprio escritor era um poliglota e tanto, o que muito favoreceu não só o seu ingresso na carreira diplomática como a plasticização do português em sua obra, na qual os neologismos chegam aos milhares, como bem o provou Nilce Martins em seu livro “O léxico de Guimarães Rosa”. Todavia, como perceberam alguns especialistas, suas maiores transgressões foram sobretudo na área sintática. A propósito, recordo que meu antigo mestre Luiz Antonio Marcuschi, um dos mais eminentes linguistas brasileiros, fluente em alemão, me apontava que há muito da sintaxe alemã na inovadora sintaxe rosiana. Outros falam da influência do húngaro, outros do galego. E por aí vai a exuberância e a diversidade de nosso autor. “Bebo água de todo rio…”, como diria Riobaldo no Grande Sertão: Veredas.
Mágico do lúdico, esteta do mito, poeta da dúvida e alvo de uma fortuna crítica que não para de crescer, Rosa estreou com Sagarana, uma coletânea de contos (jamais deixaria de ser contista) que logo mereceu um artigo consagrador do pernambucano Álvaro Lins. Mas em breve transpôs o regionalismo dessa obra, lançando-se a uma dimensão universal. Nunca, todavia, se desenraizando de suas fontes sertanejas. Poderia ter dito parodiando Vinicius de Moraes: os muito urbanos que me perdoem, mas o sertão é fundamental.
À urbanização então em curso no Brasil (lembremos a construção de Brasília por simbólico exemplo), Rosa contrapõe um grande, belo e inusitado réquiem ao país rural: a sua obra — na qual deságuam freyres, euclides, simões, bops, mários e muitos outros… Veredas do Brasil profundo. Não por acaso sua escrita é transpassada de impactante oralidade. O moçambicano Mia Couto soube captá-la com rara poesia: “Quando chegou o primeiro livro, ‘Primeiras Estórias’, houve um fenômeno curioso. Eu não conseguia entrar naquele texto. Era como se eu não lesse, ouvisse vozes, que eram as vozes da minha infância. […] Era quase uma linguagem de transe, que permitia que outras linguagens tomassem posse dela”.
Quem tem medo desse “transe” rosiano? Quem tem medo de João Guimarães Rosa? Minha vontade é de dizer: muita gente. E muita gente boa. Não sabem o que estão perdendo. Não obstante a dificuldade que muitos sentem (inclusive escritores) com sua literatura, ela vem continuamente inspirando diversas artes, a exemplo da música, da dança, da fotografia, da “graphic novel”, das artes cênicas e do cinema, além de novas traduções. Agora mesmo sua obra máxima — “Grande Sertão: Veredas” — será mais uma vez traduzida para o alemão e o inglês.
Ao falecer em 19 de novembro de 1967, com apenas 59 anos, publicara recentemente “Tutameia”, mais um livro de contos, nele incluídos quatro prefácios do próprio autor onde explicava sua teoria poética e seu processo de criação. Há poucos dias entrara para a Academia Brasileira de Letras. Chegara ao auge da consagração. Mas um coração nada diplomático traiu sua vontade de viver e a recém-conquistada “imortalidade”.
Usando suas próprias palavras, todo brasileiro bem que poderia dizer: Guimarães Rosa “não morreu, tornou a ficar encantado”.
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