Conheci Otto Maria Carpeaux (quase escusado dizer que por meton?mia) em 1980, numa viagem ao Rio de Janeiro. Aos 23 anos, eu mal sa?ra da adolesc?ncia. E ele, o grande autor, mal desaparecera do cen?rio intelectual brasileiro, uma vez que morrera havia pouco: em 1978. O fato ? que, apenas por uma quest?o de marketing livreiro, recebi de brinde, do pr?prio editor (que ali?s autografou o livro), a colet?nea de artigos e ensaios intitulada ?Reflexo e Realidade?, que conta com um belo e erudito pref?cio do poeta e ensa?sta Sebasti?o Uchoa Leite. A editora era a Fontana, que suponho n?o mais existir (o Google pouco me ajudou a saber), e o nome do editor (sua assinatura ? ileg?vel) terminei esquecendo nessa ?noite dos tempos? que trazemos em nossa pr?pria cabe?a. Ali?s, para nossa felicidade.
?Reflexo e Realidade? foi para mim uma boa porta de entrada ao universo do cr?tico liter?rio e jornalista que foi Carpeaux, de quem j? se disse que foi o melhor presente que a ?ustria j? deu ao Brasil. Nosso autor era vienense de nascimento, tendo chegado ao Brasil com 40 anos, em 1939, por causa da guerra, e logo depois tendo se naturalizado. Forjara-se numa Viena ainda quente de figuras como Wittgenstein, Gustav Mahler, Loos, Karl Kraus, Freud e tantos outros que a haviam transformado, na virada do s?culo, na capital cultural da Europa. Foi l? que doutorou-se em Letras e Filosofia e publicou seus primeiros livros.
Recordando-se dos seus anos vienenses em maio de 1949, quando de sua primeira entrevista no Brasil, concedida ao escritor Homero Senna (Cf. acervo.revistabula.com), Carpeaux relembra suas ideias e sua luta em prol da soberania da ?ustria, sobretudo como consubstanciadas em seu livro ?A Miss?o Europeia da ?ustria?, assim como sua posi??o antifascista, que o tornou um jornalista perseguido pela Gestapo. Nessa entrevista, expressa a sua d?vida de gratid?o ao cr?tico ?lvaro Lins, que o acolheu e o apresentou ao p?blico brasileiro, e revela sua admira??o por Machado, Lima Barreto e Augusto dos Anjos, ?[…] porque s?o os mais brasileiros, os que me dizem coisas que ignorava na Europa?. ? pergunta ?Dos livros de sua autoria, qual o que prefere??, respondeu: ?O que escrevi e n?o publiquei: a ?Hist?ria da Literatura Ocidental?, conclu?do em 1945?.
Obra monumental, ambiciosa e digna dos adjetivos mais superlativos, a sua ?Hist?ria da Literatura Ocidental? ? de fato um ?tour de force?. Uma empreitada que s? um vigoroso humanista e enciclop?dico conhecedor da Literatura poderia fazer. Trata-se de sua mais famosa obra, n?o por acaso fadada, desde a sua publica??o, a se tornar um cl?ssico em sua categoria. Todavia, malgrado sua grandeza ou por isso mesmo, aqui e ali, em sua leitura, podemos sentir que algo refoge ao olhar poderoso de sua mem?ria reguladora, ou melhor, refoge a uma an?lise mais apurada. H? autores que inevitavelmente s?o lidos ou registrados com certa superficialidade ou certos equ?vocos de avalia??o. O caso de Proust, o g?nio de ?Em busca do tempo perdido?. O caso da imensa e can?nica ficcionista brit?nica George Eliot, inexplicavelmente omitida pelo livro. Isso, todavia, nada emba?a o esfor?o cicl?pico do autor e a amplitude da obra.
Quanto ? forma, ? de se observar que os ensaios de Carpeaux nunca dispensam a figura pessoal do pr?prio autor e muito menos a erudi??o human?stica de que se nutriu em sua forma??o europeia. Talvez numa vida pan-europeia, facilitada por um assombroso poliglotismo. ? ele o grande leitor que, discreta e quase despretensiosamente, compartilha com os leitores as riquezas espirituais e as curiosidades com que intelectualmente se alimentou. Isso n?o dispensando nunca o vi?s explicitamente biogr?fico. Nem a clareza. Nem a concis?o. Nem o valor hist?rico. ? dele, conforme confessa, o primeiro artigo sobre Kafka no Brasil e em l?ngua portuguesa. A prop?sito, ? um deleite, por exemplo, no texto ?Meus encontros com Kafka?, ler o seu curioso contato pessoal com o grande escritor:
?[…] retirei-me para um canto j? ocupado por um rapaz franzino, magro, p?lido, taciturno. Eu n?o podia saber que a tuberculose da laringe, que o mataria tr?s anos mais tarde, j? lhe tinha embargado a voz […] Ao sair do apartamento, perguntei a meu amigo e introdutor: ?Quem ? aquele rapaz magro com a voz rouca??. Respondeu: ?? de Praga. Publicou uns contos que ningu?m entende. N?o tem import?ncia??.
A teia de ironia prossegue com Carpeaux citando ?a onda de Kafka? que se iniciou, em meados do s?culo, nos Estados Unidos e se espalhou pelo mundo e pelo pr?prio Brasil, como se deduz das palavras bem-humoradas de Carlos Drummond citadas por nosso ensa?sta: ?Franz Kafka, escritor tcheco, imitador de certos escritores brasileiros?!
Aos quarenta anos de seu desaparecimento e esquecido pelas universidades brasileiras (por v?rios motivos, inclusive pelo mais dominante ? o de destoar da tirania ?cient?fica? da cr?tica dita ?acad?mica? ?, Carpeaux merece, sim, e por in?meras raz?es, voltar a ser editado, lido e discutido. S? assim as novas gera??es poder?o conhec?-lo e se entregar ? sua leitura em busca do que h? de mais humano, demasiado humano, na literatura.
Paulo Gustavo
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