Fernando Dourado

Chicago vista do Oak Park.

Em plena manh? desta quinta-feira, 6 de setembro de 2018, despertei ilhado em Oak Park, sub?rbio de Chicago. Chovia muito. Esperando que o calor arrefecesse com a ?gua abundante,?levantei da cama lentamente para atender ao aviso sonoro, indicativo de que uma mensagem priorit?ria acabara de entrar. Que azar o meu! Por que fui esquecer o telefone na cozinha quando l? estive h? pouco para tomar um analg?sico? O desgra?ado ainda n?o fizera efeito e s? consegui achar uma posi??o que n?o me torturasse a coluna ? custa de penosa gin?stica. Agora tinha que voltar ? copa porque o recado do WhatsApp podia ser importante nesses tempos em que a agenda come?a a encolher, e o que remanesce tem que ser tratado como ouro. De mais, 7 de setembro ? feriado no Brasil, e pode ser que eu tenha pouco tempo para tomar uma provid?ncia cab?vel, dentro da faixa minguada do que me resta de import?ncia no mundo das corpora??es.

Sozinho em casa, soltei todos os palavr?es que conhecia – os daqui e os da P?tria-M?e-Gentil – e, me contorcendo de dor humanamente insuport?vel l? pela altura dos rins, me arrastei corredor afora. Deve sim ser um recado importante. Sendo nove da manh? por aqui, significa que j? s?o onze em S?o Paulo, tr?s da tarde em Lisboa, quatro em Frankfurt, seis da noite em Telavive, o que me obrigar? a desdobramentos, a depender da pauta proposta. Tenho que encantar meus clientes, tenho sim que surpreend?-los, j? n?o basta fazer o combinado. Decido tomar um segundo analg?sico, antes mesmo de sentir os efeitos do primeiro. Um homem de quase 1,90 de altura e com mais de 135 kgs de peso, n?o pode se contentar com a mesma dosagem que um maratonista raqu?tico ou uma crian?a mirrada. No caminho, dei uma topada no fio e ouvi o estalo de um abajur de p? que caiu por terra. Que fosse para o diabo, menos mal que a l?mpada n?o se espatifara.

Aproveitando que j? estava de p?, resolvi dar uma passadinha no banheiro, para aliviar a vontade que vinha segurando. Mesmo sem poder baixar a cabe?a para calibrar a mira, n?o ? poss?vel que n?o acerte o alvo – sem respingos nem trajet?rias tontas -, depois de seis d?cadas de treinamento com o mesmo hidrante. Peguei no balc?o uma esp?cie de escova de cabelo com cujo cabo consegui alcan?ar a v?lvula da descarga, e apertei-a sem urrar, como tive vontade de fazer, a exemplo dos karatecas. Isso feito, fui me arrastando at? a sala. No dia em que for ao m?dico, o cara vai se esbaldar. Se for em S?o Paulo, vai dizer que meu futuro est? seriamente comprometido e que o disco est? esmerilhado. No Recife, a palavra ser? mais contundente: “Rapaz, sinto dizer, mas voc? pode se considerar desde j? como tecnicamente aleijado”. Ent?o vai me recomendar a colegas que v?o engrossar o coro do desengano. Parece que nada os alegra tanto.

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O telefone e o computador agora est?o bem ali, a cinco passos do caminho que vou encerando ? medida que arrasto os calcanhares no ch?o de madeira. Melhor j? pegar uma garrafa de ?gua mineral e lev?-la para a mesa com os comprimidos. Sei que como ser? terr?vel achar uma posi??o para sentar, melhor que j? esteja municiado do que preciso para quando levantar, j? estar dopado. Uma garrafa de Jack Daniels acena no balc?o. Pode ser uma op??o de companhia de desdita, nunca se sabe. Abro a geladeira e uma lata de cerveja mal colocada cai da porta direto no ded?o do p? direito, cuja unha vive encravada, e que s? quem tem poder de cura sobre ela ? Gleison – o melhor que se criou em Pernambuco depois do hino de Elefantes de Olinda. O calista porque libera o corpo para andar, a m?sica porque faz a alma levitar. A lata rola para o fundo do arm?rio. Que se dane. Peguei uma garrafa de litro de ?gua com g?s e, por fim, cheguei ? mesa.

Sentar agora ? que ser?o elas. Fa?o antecipadamente todas as caretas de dor de meu repert?rio, como forma de afugentar o sofrimento anunciado. Ent?o jogo o peso do corpo para o joelho esquerdo, seguro com for?a as quinas da mesa e come?o a delicada opera??o de pouso. E pensar o quanto eu podia rir de uma cena dessa at? meus 40 anos. Naquela ?poca, diria c? para mim: quem manda ser desleixado, seu gordo indecente, a ponto de precisar de um guindaste para sentar? Agora pague o pre?o, seu monte de banha. E ent?o, me aproximaria dele e perguntaria se podia ajudar. Para coroar, diria com insinceridade absoluta que assim ? a vida e, mentindo mais ainda, insinuaria que um dia eu tamb?m teria os mesmos problemas. Agora chegou minha vez, a ret?rica est? sepultada. Com a bunda a um palmo da cadeira, quase no ponto de toque com a pista, por assim dizer, a dor fica insuport?vel. Um arrastado gemido ? inevit?vel. O suor frio poreja na testa.

Ent?o come?o a distribuir o peso pelas laterais. Num lampejo final de coragem, sento em definitivo e a press?o sobre a parte baixa da coluna ? t?o desumana que lamento n?o saber chorar. Aquilo fora uma imprud?ncia, porra. Por importante que fosse a mensagem, que tivesse esperado um pouco mais. E se agora eu entrevasse de vez, e tivesse que ir para o hospital? Quem me levaria? E como dar entrada na papelada de interna??o se nem o seguro de sa?de impresso eu tenho? Mas a mensagem j? estava ali, agora ao alcance da vista. O remetente em negrito acenava para mim e pensei que poderia ser da Espanha. Seriam aquelas ansiadas 5 linhas as que me dariam boas novas em simp?tica prosa castelhana, e que iriam soprar para longe as dores do corpo e da alma? Como no p?quer, aguardei o melhor momento para ver as cartas. Era melhor ir devagarzinho, como faziam os tarados antigos, quando dedos e boca tinham sua vez.

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Agora a mensagem estava ali. Se n?o fosse exatamente quem eu estava torcendo para que fosse, podia tamb?m ser um bilhetinho pessoal daquela mulher admir?vel cujos?Di?rios?eu terminara de ler a semana passada, de que constava a certa altura: “Aprendi com os meus a estar atenta: se n?o est? no quadro est? na paisagem, se n?o est? no olhos est? no olhar, se n?o est? nas m?os est? no gesto, se n?o est? nas palavras est? no sil?ncio; mas pasmo com quem consegue reconhec?-lo ainda mais depressa”. Seria ela que respondia a meu e-mail? J? imaginei umas linhas vazadas mais ou menos assim: “Querido Fernando, Conto v?-lo em Lisboa no outono para lev?-lo e um s?tio que se parece consigo, talvez conosco, sabe-se l?. Que tenha um bom Setembro e que chegue a Portugal de alma leve e sobranceira para dias a dois que logo parecer-lhe-?o eternos. Muito sua, RF”. Seria ela? Coloquei os ?culos e preparei-me para o deleite na desdita.

Prezado Cliente, Informamos que a leitura do seu medidor pode ser realizada em intervalos de 27 a 33 dias. Adequamos o calend?rio de leituras para manter os intervalos com menor varia??o poss?vel, no entanto esse n?mero varia devido ? quantidade de dias ?teis e feriados dos meses. No m?s passado, sua conta teve 28 dias de consumo faturados e neste m?s ter? 33. Por ter mais dias de consumo nessa conta, voc? poder? perceber um aumento no valor total da fatura deste m?s.

Ent?o era isso? Decidido, tomei o segundo analg?sico e emborquei meio litro de Perrier no gargalo, deixando que a ?gua escorresse pelos cantos da boca e que molhasse a camisa, a poltrona e o parquete. Nessas horas, pensei, n?o ser? que deveria acreditar na exist?ncia de Deus ou na Provid?ncia Divina? Pois se estivesse em S?o Paulo e recebesse?isto, acho que iria pedir uma arma a meu amigo Henrique, e ent?o iria mobilizar c?us e terras para achar onde ficava o celerado, o s?dico, o desocupado, o oligofr?nico respons?vel por disparar esse tipo de mensagem aos milh?es para os clientes da Eletropaulo. Com a cabe?a entre as m?os, pensei: em que baixo meretr?cio trabalhava a m?e desse desnaturado quando embuchou de um marinheiro sifil?tico para, seis meses e meio depois, parir uma excresc?ncia, um man?aco que dedicou a vida adulta ? miss?o de distribuir informa??o t?o in?til quanto rebuscada? A dor ia me matar.

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O rem?dio come?ou ent?o a surtir efeito. Achei, a justo t?tulo, que merecia um gole de Jack Daniels. Afinal, analg?sico n?o ? antibi?tico. Botei tr?s dedos no copo baixo e virei tudo num gole grande que, enquanto descia, me provocou as mesmas vibra??es do espinafre em Popeye. Por que n?o uma segunda dose? Que esperasse um pouco. Antes de sentir a embriaguez da bebida em plena manh?, num sub?rbio alagado de Chicago, a poucas ruas de onde nasceu Ernest Hemingway, que tivesse um s? minuto de compaix?o e pensasse no pobre diabo que escrevera aquilo. Ser? que eu ainda seria capaz da empatia mais comezinha? Ser? que podia ter piedade dos outros e n?o s? de minhas desventuras? Tentar ? nosso dever. Pois bem, como tinha sido o dia do autor desse memorando, momentos antes de ter ele ter tido a ideia de prop?-lo ao chefe?? O que buscava? Certamente uma promo??o, uma nota de louvor.??

Ent?o me perguntei: mas a quem podia interessar saber uma s? linha do que ele est? dizendo naquela porcaria de pe?a? Acaso uma resid?ncia (sic) onde a conta mensal jamais excedeu R$40,00 merece uma explica??o t?o detalhada quanto rid?cula? Acaso sou eu a ALCAN, a ALCOA ou a CBA? No que pode me interessar saber seus crit?rios de vencimento e medi??o? Acaso estou lhe devendo alguma coisa? J? n?o bastam os extratos de “simples confer?ncia” que chegam e que, na boca do caixa eletr?nico, ficamos sabendo que eram um mero demonstrativo, sem serventia para pagamento? Se eu o encontrasse num boteco perto do escrit?rio dele, armado ou n?o, o que lhe diria? Provavelmente: voc?s n?o t?m o que fazer n?o, seus celerados? Querem me esfarinhar a coluna, seus mentecaptos? Por que n?o mandam cortas os galhos que derrubam a fia??o de S?o Paulo ? menor chuvinha e ? menor ventania?

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Ent?o os rem?dios e a bebida fizeram efeito. Sem me dar conta, levantei da cadeira como o fazia at? a semana passada. Estava bem e talvez merecesse dar um cochilo at? o meio-dia para compensar a p?ssima noite. Assim, quem sabe, teria mais umas horas para escrever algo de decente para a revista para a qual colaboro. Foi quando entrou, agora sim, uma mensagem ansiada, n?o exatamente aquela por que eu esperava, mas que j? foi um passo na restaura??o dos estados de alma: “Aguardo-o em Los Angeles na manh? da segunda-feira. Reuni?o confirmada”. Ent?o, por outras raz?es, fiquei feliz. Era bom sinal. Abri as janelas e ainda chovia em Oak Park. Um cheiro de terra ?mida casou bem com os efl?vios do u?sque. Perspectiva ? tudo na vida. At? que a pr?xima dor na coluna d? raz?o ao falar duro dos m?dicos do Recife e ent?o eu seja declarado “tecnicamente aleijado”. E se eu mandasse para a revista essas anota??es?

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