Luciano Oliveira

Jornaleiro.

 “É bom Jair se acostumando”. Quando esse trocadilho (reconheço que bem bolado) apareceu, faz meses, parecia brincadeira. Mas eis que o Coiso virou coisa séria… No campo da esquerda democrática a que pertenço, estamos todos boquiabertos e preocupados: as eleições diretas para presidente da república – ou seja: o voto direto, universal e secreto –, por que tanto lutamos nas maravilhosas jornadas de pouco mais de trinta anos atrás, quase elegeram, no primeiro turno de domingo último, um candidato que tira sarro de negros, gays e mulheres, fez várias vezes elogios à tortura, despreza os direitos humanos, está se lixando para a democracia e usa, como imagens, dedos em “L”, simbolizando um Colt, ou, à la Bolt, a posição de arqueiro em jogos olímpicos – só que simbolizando um fuzil! Realmente…

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Num momento de grande angústia no domingo passado, enquanto assistíamos lá em casa à evolução dos votos que pareciam garantir a vitória de Bolsonaro no primeiro turno, cheguei a dizer que compreendia o suicídio de Stefan Zweig! (Cf. Alberto Dines, A Morte no Paraíso.) Mas eu estava meio de porre. Na segunda, mesmo de ressaca, acordei com a certeza de que, comigo ou sem-migo, a vida continua, e que de nada adianta choro ou ranger de dentes. Assim, que continue comigo!

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O tom de brincadeira na segunda metade da frase acima apenas tenta aliviar o sentimento de desolação da primeira. A violência de forma alguma é uma exclusividade da extrema-direita. Lembro que em 2014 dois descerebrados do Black Bloc soltaram um rojão no meio de uma manifestação que atingiu a cabeça de um cinegrafista da Rede Band, matando-o; e no dia mesmo da prisão de Lula, em frente ao instituto que leva o seu nome, um bate-boca terminou com um brutamontes do PT investindo contra um manifestante anti-petista com tal força que terminou levando-o ao hospital com traumatismo craniano. Por sorte, e felizmente, o agredido não morreu. Mas dificilmente a sorte salvaria alguém que leva não um empurrão, mesmo violento, e sim doze facadas – como aconteceu na madrugada da segunda-feira com Mestre Moa do Katendê na Bahia, eleitor do Partido dos Trabalhadores, depois de uma discussão num bar com um bolsonarista que tinha passado o dia enchendo a cara.

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Mesmo não tendo o monopólio da violência, a verdade é que neste momento, no Brasil, é a extrema-direita – que, aliás, tem uma tradição histórica de se juntar em bandos para promover violências de rua – que anda assustando. Eu mesmo, figura insignificante e pacata, tive uma experiência pelo menos de receio no domingo último. Não sou – aliás, nunca fui – propriamente um petista, muito menos um lulista. Mas sou um cidadão de esquerda que, em certas ocasiões, manifesta sua opção política vestindo uma simples camisa vermelha. Foi assim que fui votar. Mas, pouco antes de me vestir, lembrei-me de uma camisa vermelha com gola e insígnia (“Brasil”) em amarelo do bloco carnavalesco Eu Acho é Pouco, que amigos me deram na época da Copa do Mundo. Nela, em dégradé, o grito de “Gooool” é aproveitado para compor um grito evocando o impeachment de Dilma: “É Goooolpe no Brasil”. Mesmo não sendo dado, por temperamento, a escandir tais gritos, ainda pensei em usá-la, só como forma de marcar mais incisivamente a minha posição nessa quadra histórica brasileira. Pois bem: não tive coragem. Pus a camisa bandeirosa de volta ao armário, e vesti a simples camisa vermelha. Em nenhum momento fui hostilizado. Mas, diferentemente do que estávamos acostumados a ver em outras eleições, quase não vi pessoas vestidas nem como eu…

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Mestre Moa, ficamos sabendo, era uma figura conhecida na Bahia pela militância social, política e cultural da população negra na terra de Dorival Caymmi, Gilberto Gil e Caetano Veloso – que fez um desabafo arregalado e entristecido sobre a sua morte “bárbara”. Enquanto cifra, o episódio entrará nas estatísticas de homicídios no Brasil como mais um desses casos de discussões de bar em fim de domingo que matam tanta gente no país. Quando os infames programas policiais mostram tais cenas na segunda-feira, elas são horríveis de se ver. Mas, como a arte transforma coisas repugnantes em matéria de contemplação (acho que acabei de citar a Poéticade Aristóteles!), ao ver Caetano pranteando seu amigo lembrei-me de uma velha canção de Paulinho da Viola, Coisas do mundo, minha nega, onde o compositor fala de um tocador de viola circulando pela cidade, vendo coisas horríveis e transformando-as em beleza: “Por fim eu achei um corpo, nega / Iluminado ao redor / Disseram que foi bobagem / Um queria ser melhor / Não foi amor nem dinheiro / A causa da discussão / Foi apenas um pandeiro / Que depois ficou no chão”. E depois completa: “Não tirei minha viola / Parei, olhei, vim-me embora / Ninguém compreenderia / Um samba naquela hora”.

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Mas a causa da discussão não foi um pandeiro! Por isso termino com Carlinhos Lyra e o refrão da sua triste, mas esperançosa, Marcha da Quarta-Feira de Cinzas: “E no entanto é preciso cantar / Mais que nunca é preciso cantar / É preciso cantar e alegrar a cidade”.