Marchas e acampamentos
Certamente, o melhor da minha vivência na caserna foram as marchas e os acampamentos. Fizemos alguns, quase sempre no altiplano do Cabo Branco, deserto naquela época. Íamos a pé, levando um pesado equipamento. Além do fuzil – o “mosquetão Mauser”, ainda do tempo da Primeira Guerra Mundial, que pesava uns cinco quilos – e do cinto de guarnição, cada soldado levava às costas meia lona de barraca, meio mastro, dois barrotes de madeira aparelhados para servir de estacas de fixação das tendas (concebidas para duas pessoas), cantil, marmita, objetos pessoais para uma semana, que mais?
No entanto, além dos bons ares campestres, a instrução era divertida: orientação por bússola, cavar trincheiras, simulação de combates, camuflagem à noite para supostas espionagens… Sem falar de pequenas libertinagens, como discretas recepções nas tendas dos sargentos amigos, com cachacinha e cajus, para os praças mais cotados, os “peixes”, entre os quais estava eu incluído.
Uma vez, como cabo, à frente de um pequeno grupo, em deslocamento sobre um campo de abacaxis abandonado, flexibilizei as regras de comando. Um soldado atrasou-se, para colher um abacaxi remanescente da plantação. Em lugar de repreendê-lo, avalizei o deslize: com as baionetas, cortamos a fruta e a saboreamos todos.
Na volta do acampamento, o sargento Vasconcelos, amigão, à frente da tropa, me mandou abrir e acelerar o passo, na areia fofa da praia:
– Puxa, Ribeiro, puxa!
Segui à risca a recomendação. E logo chega o tenente Moreira, que fiscalizava a retaguarda, correndo e gritando:
– Vasconcelos, o que é isso? Os homens lá atrás estão correndo! O passo de um homem equipado não pode ser igual ao seu, que não leva peso nenhum. Reduza já o ritmo!
E a ordem superior foi cumprida.
Guerrilheiros e soldados
O último treinamento em campo foi uma simulação de combate contra perigosos guerrilheiros, representados por uma das companhias, a CCAC. O local era uma mata no município de Vila do Conde, não muito distante da capital, mas longe do mar, o que significava o desconforto de uma semana sem banho. Umidade, insetos e cobras completavam o quadro de agruras (as últimas, para mim, nem tanto, pelo que reportei em “O Praça que Amava Serpentes”, Revista Será?, dezembro de 2016).
Acampados, devíamos manter vigilância, à noite, contra incursões dos “guerrilheiros”. E alguns incidentes pitorescos foram registrados. Um deles com o recruta Piancó (nome da sua cidade de origem), que os colegas de farda fingiram desconhecer, nas penumbras, exigindo identificação e acabando por dar-lhe um tiro de pólvora seca. O matuto ingênuo saiu aos gritos: “Eu sou o Piancó, da CCS!” O outro, com um jovem tenente, inseguro e pouco respeitado, que montou uma guarda em torno de sua barraca, para não ser sequestrado pelos terroristas…
Comigo, ocorreu que vi passar, pelas “linhas de defesa”, agarrado à traseira de um jipe da companhia, uma figura estranha. E vi o capitão correr atrás, sem razão aparente. Corri também, e vi desprender-se do veículo um indivíduo, que logo se abrigou atrás de uma choupana abandonada. Fui em sua busca e o flagrei preparando uma “granada” para jogar no nosso acampamento. Agarrei-o, logo ajudado por dois parrudos sargentos, até que o capitão interveio:
– Podem soltar¹ Este homem cumpriu missão. Os terroristas não fazem questão de se sacrificar por suas causas. Ele passou por várias sentinelas, sem ser notado. Uma vergonha, para todos vocês!
Ainda de sangue quente pelo engalfinhamento, contestei, imprudentemente:
– Eu vi. Fui atrás e agarrei!
– Foi porque você me viu correr. Eu queria ver até onde ele chegava.
– Não senhor, capitão. Eu vi mesmo, contestei exaltado.
Imagino que o capitão deve ter tomado meu atrevimento por um compreensível brio de combatente, pois, para minha surpresa, deu-se por satisfeito.
O último dia para nós foi de “ataque” ao reduto dos guerrilheiros, avançando, sob algumas explosões, jogando-nos ao solo, e deflagrando tiros de pólvora seca. Contribuindo para o realismo da cena, começou a chover copiosamente. Ao final, quando fomos ao rancho, estávamos sujos e ensopados. E fomos recolhidos, em caminhões, para voltar ao quartel.
Detalhe desprimoroso para o desfecho: espremidos nos caminhões, suarentos e sem cuidados mínimos de asseio, por vários dias, não cheirávamos bem. Aliviei-me pondo o nariz numa brecha da lona de cobertura da carroceria do caminhão.
Clemente, tá me parecendo um cabo “chique no úrrtimo”, Aqui reclama dos odores, e lá no outro reclamou da sujeira do catre. Memórias divertidas, essas, … et pourtant.
Helga,
Ainda bem que você as acha divertidas. Agradeço o comentário. O próximo capítulo será o último. Abraço.