“Caro Fanático” é provavelmente o mais forte ensaio do livro “Mais de uma luz: fanatismo, fé e convivência no século XXI”, de Amós Oz, o grande romancista e ativista israelense falecido em dezembro de 2018.
Sempre com um olhar para a realidade concreta e global à nossa volta, na qual se sucedem os embates e os ataques dos atuais fanáticos, seja por motivos ideológicos, religiosos ou culturais, Oz começa por nos lembrar que o fanatismo humano é bem mais antigo que o Islã, o cristianismo, o judaísmo e as ideologias políticas. Para ele, o fanatismo está incrustado na natureza humana e o que comumente se chama de “pecados do ódio” são, na verdade, “pecados do fanatismo”. Ele próprio, em sua infância em Jerusalém, nos confessa que não passava de um “pequeno fanático sionista-nacionalista, dono da verdade, entusiasta e doutrinado”, “cego a qualquer argumento que discordasse da narrativa judaico-sionista que nos era passada por quase todos os adultos”.
Deixar o fanatismo para trás é “ousar mudar” e de, alguma forma, “trair” a rigidez de uma doutrina e seus argumentos simplistas e salvadores. Oz aventa bem plausivelmente que “Talvez uma das causas para o aumento do fanatismo seja a avidez, cada vez mais acentuada, por soluções simples e contundentes, pela ‘salvação de um golpe só’”. Mas outro fator recente também estaria levando água ao moinho dos fanáticos, a exemplo do endeusamento de líderes religiosos, dirigentes políticos e até o “culto a astros do entretenimento e do esporte”. Tanto uma causa como outra encontram um solo fértil “na crescente infantilização de multidões no mundo inteiro”. Aqui poderia se fazer um evocativo aceno a Freud quando estudou a aderência do homem-massa ao líder carismático, na qual confortavelmente se dilui um ego sedento de amparo e cansado de desabrigo. Oz, neste passo, bem nos adverte que “crianças pequenas e mimadas são os consumidores mais suscetíveis à sedução”. E vai além ao constatar que “Bem diante de nossos olhos vai se apagando a fronteira entre a política e a indústria do entretenimento […] As qualificações necessárias a um candidato para conseguir se eleger são quase opostas às necessárias para liderar e dirigir”. (Será que conhecemos esse filme?).
O fanático, observa o escritor, é alguém que não deseja mudar, mas, em compensação, quer obsessivamente mudar o outro. Quer abrir nossos olhos para que também vejamos a luz, quer nos redimir a todo custo. Como possíveis antídotos à rigidez fanática, Oz nos propõe a curiosidade, a imaginação e o humor, este último sobretudo quando aplicado a nós mesmos. Neste passo, há que se identificar um fanático como alguém falto de senso de humor, não obstante, como ressalta o ensaísta, muitos fanáticos possuírem “sarcasmo e língua ferina”, o que, convém realçar, é bem diferente de senso de humor.
Finalmente, após rastrear os traços mais significativos do fanatismo, mas naturalmente sem receita pronta para combatê-los, Oz, numa frase-síntese, nos diz que “O fanático é um ponto de exclamação ambulante” e que “É desejável que a luta contra o fanatismo não se expresse como outro ponto de exclamação a enfrentar o primeiro”. Enfim, talvez nos queira dizer que é preciso enfrentar o fanatismo pelos flancos, trazendo-o para a seara das “situações em aberto”. No mais, é ir sufocando com bom humor e abertura o pequeno fanático que trazemos conosco em nossa alma. É saber que é impossível eliminar todos os fanáticos, mas que é bem possível diminuir consideravelmente o fanatismo.
Escusado dizer como o pequeno e denso ensaio de Oz, aqui brevemente apresentado e resumido, é texto como que também talhado para o Brasil de hoje, politicamente polarizado por fanáticos e messiânicos que, tão sérios e ingênuos quanto maliciosos, querem nos fazer supor que são os donos do poder e da verdade.
Ao ensaio de Oz, eu só acrescentaria que a arte e a literatura (literatura da qual ele foi um dos grandes mestres do nosso tempo) também estão aí como um grande e plural antídoto ao irracionalismo e à mortífera aventura de todos os fanáticos.
Paulo Gustavo
Recife, 6 de fevereiro de 2019
Caro Paulo, Deliciei-me com sua resenha. Permita-me registrar uma ironia histórica. Amos OZ morreu como um fanático. Após a Guerra Dos Seis Dias defendeu a criação de dois Estados como solução para a paz entre israelenses e palestinos. Era, na época, uma boa proposta política.
Com novas guerras, homens-bombas, rejeicionismo palestino e fundamentalismo islâmico, sua proposta, praticamente feneceu. A ONG ‘Paz Agora” e partidos de esquerda não param de perder adeptos e eleitores israelenses e mundo afora.
Mas como um bom fanático, Oz não queria mudar. E continuava a acalentar a ideia de mudar o outro. Achava que era portador da luz e que lutava contra a escuridão. Pena, um homem tão inteligente e sensível.
Cordialmente,
Honrado com sua leitura, caro Jorge.
Grato pela atenção.
Abraço
Paulo Gustavo
Muito interessante, Parabéns.
Obrigado, Prof. Elimar.
Seu leitor e admirador.
PG
Amos Oz foi uma energia fluvial que nos irrigou de esperanca.
Infelizmente se foi.
O Brasil espera seus condominos da sensatez.
Caro Luiz Otávio,
A sensatez tarda a chegar no nosso sofrido e injusto país.
Abraço fraterno
Muito bom o texto: claro, lúcido e objetivo! Totalmente atualizado aos dias de hoje.
Paulo Gustavo: sei pouco de Amos Oz, fora que foi um líder importante dos movimentos pela paz entre Israel e Palestina. Eu o imagino como parte da geração que sonhou com Israel como algum país europeu em paz com os vizinhos e não como mais um país do Oriente Médio envolvido em conflitos. A sua bela resenha, a título de obituário, me fará ler Amos Oz. Ainda que paz, racionalidade e tolerância pareçam tão longe neste momento.
Elejo o ensaio de Oz o melhor texto que li esse ano, caro Paulo. e como vc bem pontuou, talhadíssimo para o Brasil de hoje.
grande abraço e muito grato pela leitura.