Ivanildo Sampaio

Hiroxima sempre me fascinou. Menino ainda, de calças curtas, lia na revista Seleções, que meu pai assinava desde seus tempos de solteiro, relatos sobre a infeliz cidade japonesa, cobaia para o primeiro artefato nuclear disparado pelo homem, contra uma população indefesa, quando a Segunda Guerra já estava ganha para as chamadas “forças aliadas”. Lembro-me bem do título de um daqueles textos publicados na Seleções: “Brota verdura em Hiroxima”. Ali, numa espécie de “mea culpa”, lá pelos anos 50 do século passado, a Seleções – porta-voz   quase oficial do Governo americano para o mundo – tentava mostrar que os efeitos da radiação aos poucos se dissipavam, e que Hiroxima se recuperava daquele que havia sido o ato mais covarde das tropas aliadas contra um inimigo. Pior ainda do que o massacre da população indefesa de Dresden, na Alemanha, vitimada por bombas incendiárias que por 30 horas destruíram uma das mais belas cidades da Europa, massacre este  ordenado por Winston Churchill, primeiro ministro  inglês,  certamente num dia em que havia bebido gim além da conta, pois ali também a guerra terminara.

Voltemos a Hiroxima. Quando, na condição de jornalista,  recebi um convite  para visitar o Japão,  feito pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, perguntei se  poderia colocar na programação alguma coisa mais que gostaria de ver e de fazer, para  além dos compromissos oficiais.   Quando tive a confirmação de que não haveria restrições,  apressei-me em colocar no roteiro uma visita àquela cidade emblemática.

Desde o Recife até o Aeroporto de Narita, nas proximidades de Tóquio – na época recém-inaugurado – foi uma viagem de quase 30 horas: Recife-Rio de Janeiro-Caracas-Los Angeles-Tóquio, sendo que esse último trecho, depois de uma escala de quatro horas em Los Angeles, onde foi possível lavar o rosto e esticar as pernas, levou 13 horas de vôo, grande parte do tempo sobrevoando o Oceano Pacífico, onde algumas ilhas, lá em baixo, tinham para que estava lá em cima a dimensão de uma casca de côco.

Enfim, Tóquio,  e a primeira apreensão: num vôo onde estavam mais de 250 pessoas, eu era o único que não tinha os olhos amendoados, não trajava paletó e gravata, não tinha um companheiro de viagem. À medida que os passageiros recolhiam na esteira suas bagagens e deixavam o saguão do aeroporto, eu, de posse da minha mala, começo a procurar com  os olhos alguma indicação de que estava sendo esperado, conforme haviam prometido funcionários do Consulado japonês no Recife. Quando quase todos os passageiros já haviam saído, eis que surge, correndo, com uma foto minha na mão e um pedaço de cartolina com o meu nome escrito, uma jovem funcionária do Ministério, que me esperava com uma limusine, um motorista fardado e de luvas  brancas, e “um milhão de desculpas” por ter atrasado um pouco, culpa do trânsito caótico de Tóquio até Narita.

Cheguei ao hotel numa noite de sábado, sem qualquer noção de horário, e a única coisa que fiz, foi cair na cama e dormir. Ficou acertado com a jovem que me recebeu no Aeroporto sairmos no domingo, às 10hs da manhã, para um rápido passeio pelo centro de Tóquio, onde aliás, meu hotel se localizava, bem ao lado de uma réplica mais modesta da Torre Eiffel, mas dando vista, também, para um cemitério vertical, de oito andares, o primeiro (e único) que vi na vida. O “português” da jovem era tenebroso, várias  vezes eu não entendia o que ela falava – mas a gente empatava, porque quando eu tentava falar espanhol, era ela quem não compreendia. Ao final, valeu a boa vontade, ela me acompanharia apenas no domingo, na segunda-feira, início da programação oficial, eu teria um guia e tradutor juramentado. E assim foi feito.

Na manhã da segunda-feira, na recepção do hotel, esperei pelo guia, que ainda no domingo fizera contato pelo telefone, falando um português limpo e claro. E tive a primeira surpresa: era um ex-repórter fotográfico da  Manchete, onde trabalhei por sete anos – e amigo de vários amigos meus, inclusive do talentoso Tadeu Lubambo, que foi um dos grandes nomes da revista nos seus melhores tempos. Mitsuito, era o seu nome, para os íntimos. Saiu do Brasil, casou com uma japonesa, separou dela, deixou a fotografia profissional, virou intérprete de português no Japão. Com ele comecei a cumprir a agenda oficial e, nas horas vagas, visitar alguns dos melhores bares da capital japonesa, inclusive o “Praça Onze”, frequentado por brasileiros solitários que trabalhavam na nossa Embaixada, onde os saudosistas tomavam cachaça “Velho Barreiro” e aos sábados comiam feijoada.

Cumpri a agenda oficial: jantar  no “Sabatini “- o melhor restaurante italiano de Tóquio –  com membros do Ministério dos Negócios Estrangeiros; visita à Honda; à Televisão estatal, onde vi  pela primeira vez imagens em alta definição; a uma instituição universitária que mantinha convênio com a Universidade Federal de Pernambuco (Projeto Lika); às obras de aterro da Baía de Tóquio, considerada na época uma das maiores obras de engenharia do mundo. Numa noite, entre um uísque e outro no “Praça Onze”, Mitsuito me disse para ter cuidado com o pessoal do hotel, que não via com bons olhos hóspedes brasileiros: alguns meses antes, uma famosa cantora brasileira estivera hospedada ali e, à noite, depois de uma farra mais ou menos descontrolada, alguém provocou um princípio de incêndio no apartamento, com momentos de pânico para o restante dos hóspedes. No dia seguinte, a cantora, os músicos que a acompanhavam e toda a equipe foram “convidados” a deixar o hotel.

Cumprida esta etapa, Hiroshima estava à minha espera. Não mais com Mitsuito, que havia sido escalado dias antes para acompanhar uma delegação brasileira que estava chegando a Tóquio. E sim com um novo guia.

Fiz um vôo de Tóquio até Hiroxima enfrentando um tremendo mau tempo, na companhia desse meu novo guia, um paulista filho de japoneses que lá já estava radicado há seis anos, com pleno domínio da língua e dos costumes  de sua nova pátria. Chegamos no final da tarde, jantamos no hotel e na manhã seguinte meus olhos puderam ver de perto a cidade emblemática, tema de livros e filmes, palco de pelo menos 80 mil vítimas da primeira bomba atômica detonada contra uma população indefesa.

É claro que a cidade foi reconstruída, que nós caminhamos pelas largas avenidas cobertas de cerejeiras, que as casas noturnas fervilhavam de jovens, que as discotecas tocavam os sucessos das músicas ocidentais – mas havia, em cada esquina, uma espécie de tristeza escondida, de pranto não derramado, de lamento profundo que os sons mais altos não conseguiam abafar. Sentimento que se tornou ainda mais asfixiante no momento em que chegamos ao local mais emblemático de Hiroxima, o esqueleto cinzento da cúpula de uma escola, acima da qual a bomba explodiu – e que foi preservada para que a humanidade possa ali espiar os seus pecados e todas as desventuras.

Nesse mesmo local foi construído o Memorial da Paz – ou o Museu da Paz – em cujas paredes estão dezenas de fotos de rostos  e corpos deformados pelos efeitos da radiação; depoimentos de sobreviventes que padeciam de diversos tipos de câncer que a explosão deixou de herança, um quadro, enfim, que a gente vê e jamais esquece. Um serviço de som, em vários idiomas, informava e orientava os visitantes sobre Hiroxima e seu triste destino.

Quando  deixamos o Museu, no pátio gramado à sua frente, alguns pombos se  misturavam às pessoas que se afastavam do recinto. Todos brancos, absolutamente brancos, como deveria ser a pomba branca da paz. A noite, num restaurante sofisticado, eu não conseguia me sentir à vontade. Olhava para a taça de vinho e via laivos de sangue que escorriam das fotos expostas no Museu; a   música ambiente que emanava do sistema de som,  mais parecia um canto fúnebre pelas  cinzas dos que estavam no epicentro da explosão.

No dia seguinte, ainda sob o impacto das fotos e depoimentos gravados que estavam expostos no Museu da Paz, procurei uma fuga de Hiroxima. O meu guia informou que ficaria na cidade; não havia compromisso oficial a ser cumprido, a decisão de visitar Hiroxima fora exclusivamente minha, a cidade, portanto, estava ao meu dispor. Deixei o hotel sem rumo e sem compromisso, levei um cartão com o endereço para o caso de não acertar a volta,  tomei um ferry-boat e resolvi conhecer a Ilha Sagrada de Miyajima, no Mar de Seto, onde os fiéis frequentam um imenso templo para fazer ali suas orações. Juntei-me àqueles peregrinos,  como eles tirei os sapatos, entrei no imenso tempo e silenciosamente fiz minhas próprias orações, pelas vítimas de Hiroxima, pelos filhos de Nagazaki, pelos que morreram em todas as guerras e em todos os séculos, nesse triste e desesperado caminhar da humanidade.  Desde então, Hiroxima jamais saiu de minhas lembranças.