Helga Hoffmann

Nunca se viu na história mundial uma situação como essa que está sendo gerada nas fronteiras da Venezuela para sábado 23 de fevereiro. Uma situação de alto risco inédita e perigosa. O projeto de anistia para os militares do governo Maduro foi aprovado mês passado pela Assembleia Nacional controlada por oposicionistas e foi divulgado por Juan Guaidó, o autoproclamado presidente interino da Venezuela, com a ideia de que funcionaria como incentivo para que os militares derrubassem Maduro. Não surtiu efeito. Ou pelo menos não foi suficiente, já que não prevê qual será exatamente o papel desses militares em um governo pós-Maduro. Desertaram apenas dois ou três militares, que já estavam no exterior, e assim não poderiam ser atingidos por punições do atual governo. Os que estão na Venezuela talvez estejam se debatendo entre temor à punição e dúvida sobre a vantagem hipotética de uma anistia. Ou talvez nem isso: ouvi de um venezuelano que anistia se dá a quem cometeu algo de errado, e os militares não necessariamente acham que estão cometendo algo de errado.

E assim o linguajar sobre Venezuela esta semana adquiriu tons de guerra, com avaliação das tropas disponíveis e do perigo de embates ou “acidentes” nas fronteiras. Um artigo do correspondente do Financial Timesnos Andes (em 20.02.2019) deveria provocar alarme, ao menos para vizinhos da Venezuela, ao examinar o poderio armado oficial da Venezuela e dizer que o da Colômbia “era o triplo, melhor equipado, e apoiado pelos Estados Unidos”. Mas que o poderio armado da Venezuela incluía as milícias e os “coletivos”.

Tudo porque a oposição venezuelana anunciou em janeiro, e prepara para este sábado, 23 de fevereiro, uma operação de entrega de alimentos e remédios nas fronteiras da Venezuela, sobretudo aquelas na fronteira terrestre com a Colômbia e o Brasil. Ainda esta semana, no dia 19 de fevereiro, o Ministro da Defesa venezuelano General Vladimir Padrino López fez um pronunciamento assustador, rodeado por seus homens, do qual destaco apenas uma frase: “No van a poder pasar por la conciencia, el espíritu patriótico de los hombres y mujeres de la Fuerza Armada, por la vía de la fuerza para imponer un Gobierno aquí, títere, genuflexo, entreguista, antipatriótico. No lo van a poder lograr. Van a tener que pasar por estos cadáveres”. E repetiu “estos cadáveres”. (Íntegra em CNN em espanhol.)

A que se refere o General? Acusou governos estrangeiros em geral de pretender dar ordens à Força Armada Bolivariana e especificamente citou a Colômbia em tom mais ameaçador, insinuando rixas históricas. Isso por causa do apelo do Presidente da Colômbia para que os militares e a polícia permitissem aos venezuelanos ir buscar a ajuda de alimentos e remédios depositada perto da fronteira. Na versão que prevalece entre os militares venezuelanos, a ajuda, carimbada com USAID em enormes letras e com a tradicional frase “Del pueblo de los Estados Unidos de America”, seria o cavalo de Troia de uma invasão dos Estados Unidos. E Juan Guaidó seria apenas o testa de ferro dessa invasão. Até que ponto a população venezuelana aceita essa narrativa? Ou é obrigada a aceitar?

Eu até concordaria que é humilhante para os orgulhosos herdeiros de Simon Bolivar, no país que já foi o mais rico da América Latina, estar recebendo pacotes da USAID, como se fosse a pátria do povo mais destituído do mundo. A preocupação de marketing dos americanos claramente atrapalha mais que ajuda. Mas daí a uma despropositada teoria de invasão americana? Será? Seriam capazes de tamanho despropósito? De qualquer modo, o governo Maduro já proíbe há tempos a entrada de ajuda externa, de qualquer fonte, mesmo da ONU. Ou melhor, só permite a entrada de produtos do exterior em grande escala quando são despachados para o governo. Algo normal, não fosse a situação anormal de uma crise humanitária de grandes proporções.

O Brasil não chegou a ser mencionado no pronunciamento do General Vladimir Padrino. Em compensação, no mesmo dia, O Brasil foi o alvo de Diosdado Cabello, vice-presidente do partido do governo, o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), que falou a milhares de chavistas na Ponte de Angostura, uma passagem sobre o rio Orinoco rumo ao Brasil no estado de Bolivar, que tem limites com o Brasil e a Guiana. Sobre a ajuda prometida pelo governo Bolsonaro protestou: “Ni es ayuda ni es humanitaria…aquí en Bolivar no pasarán, encontrarán un muro de personas”. Disse que a “suposta ajuda” é um bom negócio da “direita venezuelana e dos que dirigem a operação contra a nação bolivariana”. Curiosamente, criticou que essa ajuda se dava “por fora dos sistemas internacionais promovidos pela ONU”. Acontece que a ONU só pode entrar em um país com permissão do governo de tal país.

Fato é que o governo Maduro está decidido a impedir pela força a entrada de ajuda. A fronteira terrestre com a Colômbia e com o Brasil já foi fechada, navios estão impedidos de sair dos portos principais para que não dificultar as medidas para impedir navios com ajuda de atracar, o espaço aéreo com o Caribe já está fechado. A Ponte Internacional Tienditas, que liga Cúcuta, capital do estado de Santander Norte, na Colômbia, ao estado de Táquira, na Venezuela, já está fechada por enormes contêineres. Em Cúcuta está depositada a maior quantidade da carga de alimentos e remédios. Anuncia-se que a ponte Tienditas será, desde 6ª até domingo, o cenário de uma “guerra dos concertos”, com artistas aderindo de ambos os lados: do lado colombiano “Venezuela Aid Live” em Cúcuta, e do lado venezuelano o “Hands Off Venezuela” no estado de Táquira, como anunciado pelo governador. Triste uso de uma ponte moderna que mal se terminou de construir. Enquanto isso Juan Guaidó já iniciou uma caminhada rumo à fronteira colombiana, caminhoneiros da Venezuela se declararam dispostos a buscar a ajuda, mas já estão sendo parados no trajeto.

Consta que militares americanos e latino-americanos acordaram em Miami que a ajuda não seria levada a força, não se tentará cruzar a fronteira para entregar pacotes. Decidiu-se colocar as caixas perto da fronteira e permitir aos venezuelanos que entrem para buscá-la, com seus próprios meios de transporte. São desconhecidos os detalhes de como se organizaria tal distribuição e quais os critérios. Entrega de qualquer coisa a qualquer um?  Detalhes não foram divulgados. Mas ninguém precisa mais pensar nisso. Maduro está decidido a não deixar que venezuelanos saiam do país para ir buscar essa ajuda.

Ao que parece os líderes da oposição venezuelana não imaginaram ou não incluíram na estratégia a hipótese de que os militares não atenderiam ao apelo de permitir a livre entrada da ajuda. É claro que distribuição de alimentos e remédios reforçaria o prestígio da oposição. E assim o apelo foi rejeitado pelo governo Maduro, não só com uma retórica ofendida e orgulhosa, como por uma demonstração de força bruta. Com forças militares reforçadas nas fronteiras do lado venezuelano, até com tanques, a esperança de que os militares cederiam se desfaz. A ideia de entregar ajuda “de qualquer maneira” é absurda. De qualquer maneira?! Com invasão? A esperança agora é que prevaleça o bom senso do lado das forças armadas dos vizinhos e que seja rigorosamente cumprida a decisão de que não haveria entrega à força. O vice-presidente brasileiro General Hamilton Mourão declarou, mais uma vez, que uma invasão da Venezuela pelos Estados Unidos seria um despropósito. Mais que isso, seria tornar uma situação terrível ainda pior. Mesmo assim todas as partes estão assumindo riscos sem precedentes.  O que vai acontecer se forem feridas pessoas ao furar o bloqueio de Maduro contra a ajuda? Quem será responsabilizado? Queremos criar uma Síria logo aqui do lado? Será que é preciso lembrar que uma guerra na Venezuela afetará antes de mais nada os vizinhos mais próximos, a Colômbia sobretudo, e também o Brasil? Como é que o Brasil não procurou uma estratégia de negociações que não fosse atrelada àquela dos Estados Unidos? Esqueceu até que a energia de Roraima é fornecida pela Venezuela?