Helga Hoffmann

Ataques à proposta da Nova Previdência insistem em que ela prejudica os mais pobres e dão como exemplo a redução do BPC (Benefício de Prestação Continuada). Vi afirmação de que “a Nova Previdência prejudica os mais pobres por reduzir o BPC do idoso pobre de R$998 para R$ 400”. Acontece que não é bem assim.

Primeiro, a proposta, na verdade, é substituir o atual BPC, de um salário mínimo mensal a partir de 65 anos de idade, por R$400 a partir de 60 anos de idade e R$ 700 a partir de 70 anos. Segundo, é preciso verificar quem de fato é beneficiado pelo BPC, pois isso não é algo evidente, já foi questionado, e o recadastramento está incompleto. Terceiro, já faz ao menos duas décadas que os estudiosos do mercado de trabalho ponderam que o BPC não deveria ser idêntico ao mínimo da Previdência (que hoje é de um salário mínimo), pois conceder a alguém que não pagou contribuições uma aposentadoria com valor igual ao dos que pagaram a contribuição, além de injusto,  é um estímulo a dispensar o registro e permanecer informal. Quarto, um exame cuidadoso não confirma essa ideia de que o PBC é assistência que atende exclusivamente os mais pobres. Quinto, ter os detalhes de um programa assistencial sendo discutidos como matéria constitucional é mais um dos absurdos retóricos e fantasias da Constituição de 1988.

Seja como for, é falso que uma redução do BPC torna regressiva (prejudicial aos mais pobres) a proposta da Nova Previdência.

Afinal o que é o BPC? A rigor, o BPC não é previdência, sequer é programa de assistência social, já que é definido como direito constitucional. Está previsto na Constituição de 1988 em seu artigo 203: “A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: … V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.” A LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social) de 1993 (governo Itamar Franco) definiu que esse benefício seria concedido a deficientes (em qualquer idade) e idosos acima de 65 anos, em famílias com renda familiar per capita[1]igual ou inferior a um quarto do salário mínimo.

Três anos após a sua existência de fato, em 1996, o BPC tinha 346 mil beneficiários. Ainda era desconhecido. A quantidade de requerimentos foi aumentando à medida que o BPC foi se tornando conhecido, os requerimentos foram quase sempre aprovados e, em 2018, os beneficiários chegavam a 4,5 milhões de pessoas, 2,5 milhões deficientes com limitações diversas e 2 milhões de idosos (dos quais mais de metade mulheres). É um número significativo quando lembramos que aposentados e pensionistas somam pelo menos 31,5 milhões. Em 2017, a despesa com o BPC foi de 50,2 bilhões de reais, o que de fato dá aproximadamente um salário mínimo por pessoa/mês.

Em agosto de 2018, no governo Temer, foi publicado um decreto para permitir revisão e recadastramento do BPC, que estava há 10 anos sem revisão, apesar de notícias ocasionais de que existiam pagamentos irregulares e de que o BPC não atingia de fato os mais pobres. O decreto estabeleceu também critérios para as perícias médicas, a cada dois anos, e em que casos não precisariam ser feitas. O então Ministério do Desenvolvimento Social verificou que havia 151 mil que estavam recebendo de forma irregular. Mas de imediato só foi possível cancelar o pagamento dos 26 mil beneficiários que continuavam recebendo apesar de já terem morrido. Fora esses, não cancelou pagamentos.

O decreto estabeleceu os procedimentos para chegar à suspensão dos pagamentos nos casos identificados como irregulares, com critérios e prazos para notificação, apresentação de defesa ao INSS, e recursos. Os beneficiários do PBC teriam que se inscrever no Cadastro Único dos programas sociais do governo federal, com prazo até dezembro de 2018. Esse Cadastro Único reúne famílias com renda familiar per capita até meio salário mínimo ou renda total familiar de até três salários mínimos. Não consegui verificar se a inclusão dos beneficiários do BPC nesse Cadastro significa que o limite original da LOAS, de um quarto do salário mínimo de renda familiar per capita para ter direito ao benefício, foi  assim automaticamente aumentado para meio salário mínimo.

De qualquer modo não estava sendo possível cumprir, por questionamentos jurídicos sobre como comprovar pobreza, sobre o significado de “prover à própria manutenção”, e sobre o que considerar como “família do beneficiário”, o limite da LOAS, de renda familiar per capita de até um quarto do salário mínimo. Mas o aumento do limite ainda não transforma automaticamente em regulares todos os pagamentos irregulares anteriores. Continuariam juristas a fazer funcionar a lei de Say sobre a oferta que cria sua própria procura, com longos arrazoados sobre a “inconstitucionalidade do critério de miserabilidade” ou sobre se filho casado faz parte da família. Matéria constitucional no Brasil, pelo visto, está sempre sujeita a infindáveis debates de interpretação, mais ainda que nossa legislação infraconstitucional. Fato é que, pelos dados da PNAD do IBGE de 2017, fica claro que estão sendo feitos pagamentos a pessoas com renda familiar per capita bem superior a meio salário mínimo e que grande parte dos que recebem BPC está na metade da população com maior renda per capita.[2]

O BPC acaba incluído na discussão da Previdência porque o seu alvo são idosos e deficientes e porque implica reforma da Constituição. Mais racional seria que fosse discutido em separado, junto com os programas de assistência social. E poderia ser fixado algum valor como 80% ou 90% do valor mínimo da aposentadoria, se queremos incentivar o registro e a formalização no mercado de trabalho. Melhor mesmo será não vinculá-lo ao salário mínimo, já que quaisquer vinculações de rendimentos amarram a política de salário mínimo e podem causar distorções, pois não há racionalidade em que certos pagamentos necessariamente aumentem junto com o salário mínimo.

É lamentável que dependa de uma discussão constitucional uma medida tão básica de racionalidade, para evitar que o BPC seja estímulo ao trabalho informal. Claro que mais justo e racional que isso seria um teto imediato para as aposentadorias do funcionalismo, nem que fosse tão alto quanto o atual teto de remuneração do STF, por exemplo. Sim, porque ainda há muita gente recebendo do Estado aposentadorias muito mais altas, sem contribuição que a justifique, simplesmente à custa de chicana jurídica. Enquanto isso, dois terços dos aposentados só recebem um salário mínimo.

No mínimo dos mínimos, as aposentadorias acima do teto constitucional, se não podem ser abolidas, deveriam não sofrer reajustes. Mas isso é considerado inconstitucional e confisco. Como se privilégio fosse sinônimo de direito adquirido, como é neste Brasil tão desigual. Mas mesmo que consideremos o PBC incluído no conjunto dos rendimentos recebidos a título de pensões e aposentadorias, é falso que a redução proposta para o valor do BPC torna o conjunto da reforma prejudicial aos pobres. Não fazer nenhuma reforma levará as finanças públicas à falência e a consequência será, provavelmente, maior limitação e até a abolição do programa Bolsa-Família. Sem falar no risco da inflação, que sempre prejudica mais os de renda mais baixa.

A reforma reduz, sim, privilégios dos que têm as aposentadorias mais altas. Ainda que lentamente, com longos períodos de transição. A dualidade do sistema previdenciário, com condições privilegiadas para parte dos funcionários públicos, já deveria ter sido abolida há muito tempo. Mas, a cada tentativa, vemos a força dos lobbies de funcionários públicos.

 

[1]Para obter a renda familiar per capita toma-se a soma dos rendimentos das pessoas no domicílio e divide-se pelo número de pessoas no domicílio, exclusive pessoas cuja condição na unidade domiciliar é pensionista (como alguém que ali alugou um quarto, por exemplo), empregado doméstico ou parente de empregado doméstico.

[2]Quem quiser examinar como os vários componentes da renda familiar contribuem para agravar ou atenuar a desigualdade de renda no Brasil, deve consultar iepecdg.com, Texto para Discussão 43, um estudo técnico de Rodolfo Hoffmann, “Distribuição de Renda no Brasil em 2016: Parcelas Progressivas e Parcelas Regressivas”. O BPC é um componente progressivo, mas é muito menos progressivo que o Bolsa-Família.