Helga Hoffmann

Para muito paulistano, que ainda é um nouveau richedo automóvel, este é símbolo de status, e pedestre não passa de pobretão ou cidadão de segunda classe.  Quem não tem automóvel, quer ter. Talvez uma razão a mais pela qual a crise aqui esteja mobilizando tanta irritação. Quando li um artigo antigo de José de Souza Martins sobre a “ditadura do automóvel”, “Uma sociedade sob as rodas”, O Estado de São Paulo, 5 de julho de 2009, decidi anotar algumas das minhas próprias experiências de pedestre no meu bairro, dito “nobre”:

Esquina da rua Conselheiro Brotero com rua Veiga Filho (verão de 2006)

A Conselheiro Brotero chega a essa esquina em três faixas apertadas, e essa esquina, em frente ao Hospital Samaritano, tem três sinais: flecha para a esquerda, sinal redondo para a frente, flecha para a direita. A flecha para a esquerda estava verde, mas o primeiro carro dessa fila estava empacado, o motorista não tinha percebido que o sinal mudara para verde. Os carros atrás dele começaram a buzinar em coro, uma meia dúzia. Eu vinha pela calçada, era verão, e o tal carro do motorista distraído estava de janela aberta.

“O sinal está verde p’ra você. Está dormindo no ponto?” foi meu aviso. Talvez o tom tenha denotado a irritação, que era por causa da barulheira das buzinas.

De volta veio o berro do motorista:

“Filha da puta!!!!”

O carro partiu, eu olhei apalermada, não anotei a chapa. Mas pelo menos o buzinaço dos carros detrás parou – que alívio!  Parei para verificar minha roupa: será que eu estava parecendo puta?

Esquina da rua Baronesa de Itu com rua Dr.Gabriel dos Santos (verão 2007)

O sinal verde permitia que eu atravessasse. Mas um carro parou na faixa de pedestre. A bem da verdade, não ocupou toda a faixa, deixou uma fresta de 40 a 50 cm que dava para eu passar. Mas naquele momento encarnou em mim o “diabo didático”, e eu falei alto para o motorista, que estava de janela aberta:

“Olha a faixa de pedestre!”

Reação altissonante, ouvida longe:

“Vai tomar no cu!” O sinal tinha ficado verde p’ra ele, que partiu em altíssima velocidade. Nem deu para ver a chapa.

Rua Conselheiro Brotero esquina com rua Emilio de Menezes (acho que foi em 2007)

Uma mulher ao volante, na Emilio de Menezes, buzinando desesperadamente. Não havia motivo aparente para os que passavam pela calçada.

“Tá buzinando por que?” berrei eu.

“Não estou buzinando p’ra você” veio a resposta em berro.

“É, mas é o meu ouvido que doeu”, retruquei, tampando meus ouvidos com as mãos.

“Vai cuidar da sua vida!” gritou a mulher, o mais alto que pode.

“Estou cuidando!” gritei de volta, na calçada.

Esquina da rua Conselheiro Brotero com rua Veiga Filho (2009)

Abriu o sinal para os pedestres passarem, mas um carrão estava parado ocupando totalmente a faixa de pedestre. Ao me esgueirar atrás do carro, baixou minha raiva didática, e bati com a mochila no vidro de trás, bam,bam,bam! A mochila é molinha e não era força de quebrar vidro. O sinal mudou, o carro conseguiu avançar e parou logo adiante, em frente à entrada do Hospital Samaritano. Um homem saiu do carro, gritando: “Vai bater na sua mãe!!!” Ainda lembrei que não tenho mais mãe, mas tive medo, não respondi, segui pela outra calçada rapidinho.

Pois é, depois disso o meu “demônio didático” se aquietou um pouco, e passei a anotar as chapas dos carros, quando conseguia: basicamente os que passam no sinal vermelho em frente ao Hospital Samaritano. Para os quais também já cansei de gritar: “Olha o sinal de pedestre!” Carro infrator de janela aberta ficou mais raro. E anotar a chapa tampouco adianta, pois, ao telefonar, verifiquei que a CET não aceita denúncia desse tipo, só vale quando os próprios guardas verificam.  Na média, não tenho a menor dúvida em afirmar que os motoristas brasileiros em São Paulo são os piores, os que cometem mais abusos, os mais arrogantes e mais impunes que já vi, dentre as cidades em que já morei: Rio de Janeiro, Brasília, Hamburgo, Kiel, Cambridge-England, Londres, Copenhague, New York, Santiago de Chile, Madrid. Só tinha uma coisa em que Santiago de Chile ganhava (no período 1995-1998): alarme de carro disparado à noite em bairro residencial. Mas talvez tremores de terra pequenos, que não chegavam a abalar os moradores que estariam dormindo, disparassem o alarme mais sensível de um ou outro carro, em um lugar em que todos os carros são importados.