Clemente Rosas

A Ceia do Sindicato – Waldemar José Solha.

O tema da ideologia marxista, também conhecida como “materialismo histórico”, “materialismo dialético”, ou ainda, pretensiosamente, “materialismo científico”, volta ao debate pelas mãos do professor Washington Rocha, da Universidade Federal da Paraíba, em livro recentemente editado.  E posso afirmar, desde logo, que ele foi feliz na escolha do título e da ilustração de capa.  O título: “A Ceia Profana do Marxismo – Tragédia e Farsa”. A capa: a reprodução de um quadro do pintor, romancista e poeta W. J. Solha, que consiste numa paródia à “Última Ceia” de Leonardo da Vinci.  Ao centro, Karl Marx, com a frase “Um de vós me trairá”.  Dos dois lados, figuras marcantes do comunismo e do socialismo: Lênin, Trotsky, Stálin, Mao Tse Tung, Ho Shi Min, Fidel Castro, Che Guevara, Gorbachov, Salvador Allende.   A sugestão é dos diversos rumos que a teoria e a práxis do marxismo acabaram tomando, para o bem ou para o mal dos seus seguidores.

Louvo, da saída, a coragem de Washington ao atacar, de forma apaixonada e um tanto irreverente, como é de seu estilo, uma doutrina filosófico-político-econômica ainda viva na cabeça de muita gente, apesar dos reveses que lhe têm sido impostos pela História, pelo avanço da ciência e pela própria evolução da sociedade.  Seus acólitos têm-se mostrado crescentemente agressivos e pouco afeitos a um debate civilizado.  Mas não estou aqui apenas para tecer loas ao autor, ele merece mais que isso.  Cabem críticas e glosas aos seus postulados.

A primeira dessas críticas é a de que, no juízo condenatório da doutrina, cumpre-nos fazer uma distinção entre o seu criador e os que tentaram levá-la à prática.  Marx foi um pensador, movido por nobre motivação: acabar com a miséria do operariado industrial dos meados do século XIX.  Não convém esquecer que não havia legislação trabalhista nem previdência social naquele tempo.  Nem limite de horas de trabalho, nem repouso semanal remunerado, nem férias, nada. Marx foi um humanista, que viveu na pobreza (onde perdeu três dos seus filhos), lutando por um futuro mais digno para aqueles trabalhadores miseráveis, e sonhando com uma sociedade mais justa. igualitária e solidária.  Atribuir-lhe a culpa pelos crimes do leninismo, do estalinismo, de Pol Pot e Kim Jong Un não é muito diferente de atribuir àquele doce rabi da Galileia, que só pregou o amor entre os homens, os crimes do cristianismo: os massacres das Cruzadas, as torturas e a fogueira da Inquisição, a brutalidade das ordálias (“juízos de Deus”), a castração dos meninos cantores, o beneplácito à escravidão negra e ao nazismo.

Por outro lado, mesmo os milhões de mortos do estalinismo não o fazem muito diferente do capitalismo selvagem, que escravizou ou exterminou outros tantos africanos e ameríndios no período colonial, e levou à emigração cerca de um terço da população da Irlanda, sob o domínio inglês. Até o brutal assassinato do czar russo e sua família pode ser contraposto aos milhares de jovens, mulheres e crianças cujas vidas foram ceifadas pelas bombas sobre Hiroshima e Nagasáki, num momento da guerra em que o Japão já se encontrava destroçado e quase inerme.

Enfim, não há razão para fomentar ódio aos marxistas, quando a sua ideologia já pode ser vista como “datada”: simplesmente porque o mundo de hoje não é o mesmo observado por Marx, e setenta anos de governos socialistas têm sido suficientes para demonstrar que suas belas propostas são, em boa parte, utópicas.  Melhor especular por que o projeto da sociedade comunista – igualitária e solidária – com que tantos de nós sonhamos não se concretizou.  E podemos fazê-lo nos dois campos, o da teoria e o da prática.

Comecemos pela base de toda a filosofia marxista: a “fórmula mágica” da dialética.  Rotulada por José Guilherme Merquior como “uma senhora de pouca virtude”, essa metodologia de compreensão da natureza e da História, cuja origem remonta a Platão, e que passou a designar as mais variadas relações, como “contradição lógica”, “refutação científica”, “ transformações físicas”, “conflitos sociais”, “estágios evolutivos”, encontra-se hoje desacreditada.  Lukács e Sartre demonstraram a sua inaplicabilidade à História (e a emergência de Estados “teocráticos” como o Iran, em pleno século XX, o comprova).  E cientistas como Jacques Monod demonstraram que na natureza nada se processa segundo as três famosas leis da “contradição”, da “ação recíproca” e do “progresso por saltos”.  O que realmente acontece na natura está mais próximo do entendimento de Demócrito, o filósofo grego pré-socrático: “Tudo o que existe no universo é fruto do acaso e da necessidade”.  A dialética dos marxistas é apenas uma bela construção mental, de tipo “mágico”, uma “projeção animista do espírito na matéria”, insuficiente para explicar a vida, o mundo e as relações humanas, como se pretendeu.

E quanto à práxis?  É doloroso, mas inevitável constatar que as duas principais promessas do “socialismo real” não se cumpriram.  O controle dos meios de produção pelo Estado, sob o comando dos trabalhadores (na verdade, nunca efetivado), para acabar com a “exploração do homem pelo homem”, ao abolir o mecanismo do mercado, emperrou a atividade econômica, gerando carências e distorções.  Com efeito, sem os sinais do mercado, como direcionar, de forma ágil, as forças produtivas?  E a criação do “homem novo”, não movido pela ambição material, solidário e coletivista, representou frustração ainda maior.  Não se muda a natureza humana nem se destrói a individualidade por decreto.

Mas cabe também considerar o que se salva da experiência do “marxismo-leninismo”.  Temos todos observado – e sofrido – as crises econômicas periódicas do mundo capitalista. E aprendemos a suavizá-las, mas não a eliminá-las.  A maldição permanece, com os espectros do desemprego, da destruição de patrimônios, da desagregação social. E as explicações para isso parecem insatisfatórias: inovações tecnológicas?  descolamento da “economia simbólica” (financeira)?  A tese marxista se me afigura mais abrangente: a contradição entre “forças produtivas “ e “relações de produção”.  Em outras palavras, entre o caráter social  da produção e o caráter privadoda apropriação dos seus resultados.  A produção cresce, moderniza-se, expande seus efeitos – que não beneficiam, na mesma intensidade, os trabalhadores, ainda que encham os bolsos dos capitalistas.  Aí estaria a origem das crises de superprodução, da queda dos mercados, da eliminação dos empreendedores mais fracos. Temos explicação melhor?

Outra bandeira do socialismo que permanece no alto é a da aspiração da igualdade entre os homens.  Os últimos anos têm revelado, em escala mundial, o aumento da desigualdade.  E parece claro que o capitalismo “puro”, ou “selvagem”, como preferirmos, não nos levará, espontaneamente, à realização desse sonho de cristãos e comunistas.  E nos cumpre a todos, como um “imperativo categórico”, persegui-lo.

Finalmente, as conquistas do operariado industrial moderno, que hoje o fazem privilegiado em relação a outros trabalhadores informais, biscateiros e desempregados, devem-se, em grande parte, às lutas sindicais no Ocidente, fomentadas pelos comunistas, e também à própria emulação com um mundo rival, que se supunha mais justo e solidário.  Temos aí igualmente uma significativa herança dos militantes da velha esquerda.

Para terminar, além da louvação exordial ao autor do livro, quero reverenciar também aqueles comunistas abnegados que, em dado momento de suas vidas, colidiram com a verdade e, sem renunciar aos seus princípios, afastaram-se da máquina partidária, em sofrido processo de autocrítica. Victor Serge e Jorge Semprún, exemplos no plano internacional, Jorge Amado e Agildo Barata, aqui entre nós. Eles abriram os olhos de muita gente.

Mas devo exaltar ainda aqueles militantes de boa fé, que dedicaram a vida à causa do amor a todos os oprimidos, em um humanismo de certa forma mais abrangente do que o dos cristãos, cujo preceito é apenas amar ao próximo.  Conheci vários, em meus breves anos de militância política, mas aqui refiro, como exemplos, apenas dois: Gregório Bezerra, o “homem de ferro e de flor”, na feliz expressão de Ferreira Gullar, e Hiram Pereira, jornalista, gente de teatro, fonte de alegria e otimismo em qualquer adversidade, hoje, dolorosamente, na lista dos mortos sem sepultura.